Não por acaso, é o ano do bicentenário de um projeto de país que as mulheres rejeitam

Além dos 200 anos da independência, em 2022 o Brasil é palco de uma das eleições mais importantes da história recente e a sociedade civil veio forte com iniciativas cada vez mais potentes para uma guinada histórica que incluem as mulheres em suas diversidades. 

Enquanto tivemos um Governo Federal que entendeu ser importante trazer, para visitação do público, o coração conservado de um líder que instituiu uma independência e que manteve a República aos moldes políticos de uma colônia, Comunidades tradicionais e periféricas urbanas seguem enfrentando trincheiras para assegurar o próprio bem viver. E esses embates são, historicamente, liderados por mulheres negras e indígenas.

O Brasil completa 200 anos de independência exaltando a ancestralidade européia e mantendo as populações negras e indígenas reféns. Assim como em 1822, os homens brancos de classe média dominam os espaços políticos até hoje. 

Em novembro de 2021, o Grupo de Trabalho de Afinidade de Raça e do Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Senado Federal lançou o Observatório Equidade no Legislativo. A pesquisa identificou que no Congresso Nacional eleito em 2018 apenas 4 de 81 senadores se consideram negros e 2 são mulheres (brancas). 

Entre os 513 deputados federais eleitos, 77 são mulheres – e representam um aumento de 10% para 15% de representação feminina. 125 são pardos e pretos, representando 24,3% do total. Em outras palavras, 75% dos Congresso Nacional é formado por pessoas brancas em um país de maioria negra e indígena. 

Essa formação acontece não só pelo corpo presente, mas também pela aceitação da ideologia que sustenta o colonialismo e o neocolonialismo como pilar da forma de fazer política no país. 

Em uma trajetória histórica marcada por golpes de estado, passando por 21 anos de ditadura civil-militar, o Brasil foi governado pela primeira vez pelas mesmas classes populares que o edificou em 2002. Em 14 anos foram engatadas e aprovadas políticas públicas reparatórias mínimas que representaram forte impacto a curto, médio e longo prazo – e isso assustou. 

Tendo como base que a história oficial brasileira conta basicamente a história dos homens brancos europeus, heróis nacionais e toda a contribuição negra e indígena é omitida, foram dados passos que colocavam isso em cheque. 

Mas um golpe separa esse período de avanços sociais e econômicos das novas trevas contemporâneas. Quase como uma resposta à remexida na estrutura social que os governos do Partido dos Trabalhadores promoveram, o neoliberalismo e o fascismo voltaram com força. 

Após um impeachment “fajuto” justificado por pedaladas fiscais – que foram até legalizadas dois dias após a queda da primeira mulher (branca) presidenta do País – os avanços conquistados nas áreas da saúde, educação e econômicas fiscais foram sendo descontinuados e esvaziados um a um. Em meio a essa decadência de direitos, a sociedade civil organizada também retoma a força que foi dissipada pelos períodos de maior repressão. 

Nesse cenário, mulheres negras estão cada vez mais organizadas 

Nesses 200 anos de Brasil o racismo se aprimorou. É o que defende Rosa Marques, socióloga e ativista do movimento negro em Pernambuco. “Esse bicentenário nos diz que o racismo ainda está muito fortalecido porque é uma estrutura bem elaborada que se conecta com a forma capitalista neoliberal que esse país vive”, acredita a integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Ela afirma ainda que nesse formato de gestão da sociedade, a população negra, as mulheres e a juventude não são considerados na criação das políticas públicas.

Fórum Nordeste Mulheres Negras e Poder reunido em fevereiro de 2020. Crédito: divulgação.

Sendo testemunha ocular e participativa das etapas vividas pelo movimento negro, tanto de forma nacional como particularmente em Pernambuco e no nordeste, Rosa conta que a resistência e a resiliência ainda esbarram em algumas questões, como o machismo e a LGBTfobia, e isso impacta na integração de mais pessoas ao movimento. 

O antirracismo precisa considerar as outras categorias sociais para ser mais efetivo e é nessa lacuna da falta de tato com as mulheres negras e de valorização do trabalho que elas fazem – que acontece tanto no movimento negro como em outros movimentos de base – que a força política delas se recarrega de tempo em tempo.

Em 2015, mulheres negras de todo o país marcharam juntas na Esplanada dos Ministérios em Brasília. Nesse dia, além de demonstrar apoio à primeira presidenta eleita democraticamente no Brasil, elas também entregam a carta da marcha das mulheres negras brasileiras à então chefe de estado. Essa foi a segunda vez que mulheres negras se reuniram nacionalmente em prol de reivindicações próprias. A primeira foi em 1988 no Rio de Janeiro e a terceira foi em 2018 em Goiás.

Ainda em 2018, outros dois fatos históricos se firmaram cruciais para entender o fortalecimento da intervenção das mulheres negras no período eleitoral. 

Um foi o assassinato de Marielle Franco, cria do complexo da Maré no Rio de Janeiro e vereadora eleita. Dentro da câmara municipal carioca, uma das primeiras mulheres negras alinhadas no enfrentamento ao racismo institucional que condena vidas favelas à criminalidade e às diversas modalidades de mortes que existem. Atuação de referência nacional que impulsionou mais mulheres a disputar o espaço institucional na perspectiva de não deixarem que sua voz fosse calada. 

Além disso, o presidenciável que não tinha pudor nenhum em se mostrar um perseguidor dos avanços sociais e culturais das minorias que Rosa Marques citou no início do texto ganhou força, à época inexplicável, e venceu a disputa pelo Palácio da Alvorada.

“A gente se encontra com mais força em 2019 pras eleições de 2020”, Rosa Marques conta que as iniciativas que visam a conscientização do voto de pessoas negras, indígenas, mulheres, PCDs e progressistas são reações ao que vinha acontecendo no país. Tanto os citados agora como também os avanços que foram conquistados desde a primeira carta de alforria proporcionada pelas mulheres negras aos seus irmãos africanos e brasileiros escravizados.

“Quando a gente cria algo específico pras mulheres negras a gente escancara que essas mulheres nunca existiram pra política e para sociedade como pessoas competentes, qualificadas para estar em qualquer espaço. Principalmente nesses espaços políticos dos parlamentos, as vereanças, do executivo etc. É como se desse um salto qualitativo na história, pelo menos aqui em Pernambuco”, conta Rosa em alusão à campanha Eu Voto Em Negra

Ela faz parte de um projeto que discute mulheres negras e a democracia representativa no nordeste desde 2015. Em 2019, a partir de uma série de ações que visavam fortalecer mulheres negras que se candidatariam aos pleitos de vereança em suas cidades, essa campanha surgiu como forma de também conscientizar o público eleitor sobre a importância de eleger essas mulheres para esses espaços de decisões institucionais.

De 2019 para 2022, o projeto se fortaleceu. Partidos que se mostraram antirracistas e pró-feministas foram chamados à responsabilidade em todos os estados do Nordeste e as mulheres que disputam os espaços internos partidários puderam contar com esse suporte para as recorrentes violências políticas que acontecem. 

Além disso, a popularização da campanha também promoveu o alcance de novos públicos. Rosa conta empolgada que hoje o projeto do qual a campanha faz parte acompanha a candidatura de 50 mulheres negras em toda a região nordeste. “50 mulheres que avaliamos que são comprometidas com nossas pautas e que conseguiram acompanhar as atividades que viemos fazendo na construção das candidaturas para esse pleito”, Rosa salienta que existem alguns critérios para que as mulheres sejam parte do projeto.

Em Pernambuco, berço das organizações que lideram essa campanha, foi realizada uma parceria com o Tribunal Regional Eleitoral do estado para a produção de conteúdos sobre educação política, simbolizando a primeira vez que o órgão se articulou com organizações do movimento social.

Avanços acontecem por todos os lados

Outras iniciativas se destacam no intuito de fortalecimento das candidaturas de mulheres comprometidas com as pautas feminista, antirracista, anticapacitista, antiLGBTQobia e demais opressões que impedem o funcionamento de uma sociedade sem violências. 

O Mulheres Negras Decidem (MND), um projeto liderado pela Rede Umuna, é uma forte referência quando o assunto é incentivo, valorização e qualificação do debate sobre as mulheres negras nos espaços institucionais da política. Para a disputa do pleito em 2022 e em articulação do MND com o Instituto Marielle Franco, é criada a plataforma Estamos Prontas, que acompanha 27 candidaturas de mulheres negras em todos os estados do país.

Corroborando com essas e outra iniciativas de visam o voto feminino, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) encomendou uma pesquisa qualitativa ao Instituto Locomotiva para entender como votam as mulheres. 

O resultado da análise deu base para que a campanha Meu Voto Vale Muito fosse criada em articulação com a Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH) e mais 17 organizações feministas que atuam em todas as regiões do País. A ideia é demonstrar como o voto impacta na vida das mulheres em toda a sua diversidade. 

No início do mês de setembro, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e a Articulação de Mulheres Brasileiras lançaram a Plataforma para Denúncia de Violência Política de Gênero e Raça. Essa é uma iniciativa de apoio tanto às mulheres candidatas, como também às integrantes das equipes e também as eleitoras que sofrerem algum tipo de violência política durante o período eleitoral do pleito de 2022. 

Mesmo com a criação da Lei 14.192/2021 que visa combater a violência política, o Brasil é um dos únicos países da América Latina que não estabeleceu mecanismos eficazes para combater, denunciar e apoiar vítimas de violência política. E é nesse sentido que as organizações citadas se responsabilizaram de forma voluntária e sem vínculos a nenhuma frente parlamentar. 

A produção de dados, experiências e iniciativas que possam construir esses mecanismos de combate é considerada urgente pelas lideranças dessa iniciativa. “A decisão de criarmos a plataforma foi porque nessas eleições, instituições como o TSE, o MPF, Ouvidoria dentre outros, ainda não criaram plataformas que qualificam a denúncia de gênero e raça e que sejam de fácil acesso para realizar esse processo. Precisamos de uma coleta de dados qualificada e mecanismos de denúncia eficazes para combater essa cultura de violência política”, afirma Ingrid Farias, coordenadora nacional da Renfa.

Imagem destacada: divulgação | Texto: Eduarda Nunes | Edição: Renato Silva

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