“É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês”, (Lélia Gonzalez em Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, 1984)

Lélia Gonzalez foi uma das primeiras intelectuais brasileiras a se dedicar ao que hoje conhecemos por interseccionalidade. Mineira, caçula de 16 irmãos e mais velha de um, a pequena Lélia foi uma das poucas que puderam ter acesso à educação na família: os patrões de Dona Urcinda, sua mãe, custearam as mensalidades da escola como demonstração de “gratidão” pelos cuidados enquanto ama de leite. Isso possibilitou que a intelectual estudasse, mais tarde, em um colégio de elite da época, o Colégio Dom Pedro II, e acessar um ensino nobre com leituras que não se encontravam em qualquer lugar.

A produção científica  de Lélia é um show de análises sociais com vista para os valores simbólicos, históricos e práticos sobre raça, gênero e classe. Um de seus escritos mais citados é Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, artigo publicado em 1984, e discute alguns aspectos do imaginário brasileiro, em especial, sobre as figuras da mãe preta, da mulata e da mucama.

À frente de seu tempo, mas sempre o questionando, a professora maneja, com debates complexos e profundos se utilizando de sarcasmo, ironia e coloquialidade, como quem conversa numa mesa de bar. Leitora e conhecedora dos clássicos, comenta o mito da democracia racial, das afirmações de Caio Prado Jr, se ampara em Fanon, e fala de psicanálise, carnaval e corporalidade como quem palestra em um TEDx.

De forma transdisciplinar, a intelectual também coloca em cheque a linguagem e nos instiga a pensar o quanto ela pode aproximar ou afastar quem adentra uma leitura. Quando se abre um jornal, por exemplo, os cadernos de economia e política afastam leitores que não conseguem entender o que aquelas linhas informam (não seria essa a função do jornalismo?) por mais que queiram e tentem.

Ao mesmo passo, os cadernos de cotidiano e cultura recebem mais “visualizações” e “engajamento” pela linguagem pensadamente mais acessível. E assim acontece em diferentes setores sociais: nas propagandas o texto é um, em peças jurídicas o linguajar é outro (e para poucos). Cada ciência tem seu beabá. Mesmo tendo anos de acúmulo de literatura de teóricos europeus, Lélia faz questão de se fazer presente sem negociar a oralidade, ou melhor, seu pretuguês, na escrita acadêmica.

A rasteira já foi dada

“Quando se lê as declarações de um Dom Avelar Brandão, Arcebispo da Bahia, dizendo que a africanização da cultura brasileira é um modo de regressão, dá prá desconfiar. Porque afinal de contas o que tá feito, tá feito. E o Bispo dançou aí. Acordou tarde porque o Brasil já está e é africanizado”, (Lélia Gonzalez em Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, 1984)

A africanização da cultura brasileira está intimamente ligada à figura da mãe-preta, defende Lélia. É o pretuguês, que vai além do aspecto linguístico e gramatical e adentra os usos cotidianos da língua portuguesa.

Historicamente, a mãe preta foi a responsável por toda a função materna dos filhos das sinhás e sinhôs. Ensinou a falar, os significados das palavras, a cantar, deu banho, amamentou, deu de comer, colocou para dormir. As mulheres brancas se ocupavam da função de gestação e as escravizadas eram obrigadas a cuidar e educar as crias.

A mãe preta, usando das táticas de sobrevivência, mistura seus saberes para a criança que cuida. Um saber africanizado que nutria a cultura brasileira que crescia enquanto a cultura europeia, portuguesa, era sorrateiramente modificada por essas mulheres escravizadas. A cultura brasileira africanizada ganhava força debaixo do nariz do colonizador e rasteira foi dada.

“A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e uma série de outras coisas mais que fazem parte do imaginário da gente. Ela passa pra gente esse mundo de coisas que coisas que a gente vai chamar de linguagem”, afirma a autora.

Mãe Preta, de Lucílio Albuquerque

Essa internalização cultural infiltrou o padrão da língua portuguesa e realizou uma crioulização do português. Compreendendo que a língua vai além de um conjunto de regras gramaticais e é uma forma de falar sobre o mundo e nomeá-lo, Lélia assume o pretuguês como concepção de linguagem. E também ressalta a criatividade linguística que o povo negro em diáspora se utiliza para dar sentido ao mundo e a sua subjetividade sem apagar a bagagem cultural africana.

A contribuição negra à cultura brasileira, portanto, está intrínseca ao processo de colonialidade do Brasil, porém isso é ignorado diante da regra da língua oficial – de origem europeia -, da norma padrão, que apaga os marcadores africanos do uso linguístico. A ideia do que comumente é taxado como um “falar errado”, “coloquialidade”, “oralidade”, “erro linguístico”, se encontra atrelado ao processo de crioulização das dinâmicas sociais e de se falar sobre o mundo.

Ideia propagada também pela relação língua e civilização, como se quem não soubesse usar adequadamente a norma linguística poderia ser visto como um bárbaro, contraventor, uma ameaça a ordem social. Não é à toa que o falar errado é marcado como característica do perfil de criminoso no Brasil, não é mesmo? E isso está nas nossas relações sociais e é ensinado o tempo todo pra gente seja na escola ou quando um colega nos chama atenção corrigindo a nossa fala.

Mas o pretuguês não está apenas no vocábulo, nos fonemas – no pronunciar uma palavra -, na incorporação de palavras na língua portuguesa. Para Lélia, vai além disso, é uma linguagem que organiza o imaginário, emoções, e a circularidade dos sentidos considerando as contradições do contexto brasileiro. Sendo que esse por um lado exalta a diversidade, se orgulha disso no discurso nacional, e por outro silencia esses povos, sua forma de viver, os impedindo de acessar os espaços de decisão política, estabelecendo a imobilidade desses corpos – e de suas linguagens.

O pretuguês é a dinâmica da linguagem – essa está para além da língua, são ações simbólicas, sonoras, corporais -, do jeito de expressar a língua, da insubordinação – não só por não aceitar o português padrão, mas do quanto isso é um ato de apagar quem somos – e do que fazemos com a imposição do português brasileiro. É um ato contra o embranquecimento da língua e do conhecimento, já que a língua é a materialização de como acionamos significados, histórias e possibilidades de sonhar transformações.

*Imagem destacada por Acervo Lélia Gonzalez

*Texto escrito por Eduarda Nunes e Ludmila Almeida

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