A Argentina que ninguém vê

A realidade das periferias da capital argentina, das comunidades indígenas e camponesas com a chegada da pandemia aponta um aspecto pouco evidente nas manchetes: quem pode ter acesso às medidas sanitárias e de sobrevivência básica como à água e à saúde?

Durante o ano de 2020 escrevi alguns textos sobre a pandemia desde uma percepção pessoal, e também fiz um comparativo sobre como os governos, argentino e brasileiro, estavam gerindo a situação. No caso brasileiro, o resultado de uma política nacional desinteressada e negacionista, fez com que os Estados e municípios tivessem que cooperar entre eles e com outros países, para conseguir material suficiente, começar a elaboração e compra de vacinas, entre outras tarefas.  

Naquele momento, era bem nítido que a Argentina tinha mais êxito em conter o vírus que o Brasil, por ter criado uma frente nacional contra a pandemia, na qual o presidente se reunia periodicamente com governadores, para tomar as decisões em conjunto. Com a quarentena bem restrita, o país conseguiu ganhar tempo e controlar o número de contágios no país. Porém, era esperado, como em todas as nações do mundo, que o contágio aumentasse em algum momento, o que aconteceu no segundo semestre. 

Aliado a isso, alguns governadores tomaram decisões divergentes à frente nacional, o que intensificou bastante a quantidade de contagiados em algumas províncias, por exemplo, onde eu moro, em Mendoza. Portanto, as mudanças têm ocorrido em um ritmo tão frenético, que nessa altura eu já não sou capaz de fazer uma análise comparativa de como os dois países, Argentina e Brasil, estão gerindo a pandemia. 

Entretanto, quanto mais o tempo passa, mais podemos ver como a sociedade civil está sofrendo de diferentes maneiras, o custo humano que estão pagando pela pandemia, e que medidas elas tomam para mobilizar-se contra o contágio do vírus. Assim sendo, nesse texto abordaremos essas temáticas. Para tal objetivo, o relato de Paloma, uma amiga de longa data, natural de Buenos Aires, médica formada pela UBA (Universidad de Buenos Aires), nos ajudará nessa tarefa.     

O descaso e o luto 

Quando a pandemia começou, Paloma logo conseguiu um trabalho no hospital Fernández, na capital federal. Ela foi contratada em Abril para trabalhar na área de triagem, atendendo casos com suspeita de Covid-19. O hospital está localizado no bairro Retiro, uma importante região da capital, pois abarca uma parte da área nobre de Buenos Aires, mas também inclui uma das favelas mais antigas da América Latina, a Villa 31. Portanto, esse hospital atende, em grande parte, habitantes desse bairro popular.

Villa 31, Buenos Aires. Foto: AP Photo/Natacha Pisarenko

Se no começo da pandemia, a situação do Coronavírus estava meio controlada, em Maio tudo começou a ficar mais complicado. Começaram a subir os casos e o hospital começou a ficar bastante cheio. Segundo Paloma, as filas começaram a ficar impressionantes. Chegavam ônibus lotados de pessoas com sintomas, misturando casos suspeitos com casos confirmados. Ao atender o público, os médicos começavam a fazer várias perguntas e descobrir, assim, informações bastante relevantes para refletir sobre a situação da periferia portenha nesse contexto pandêmico. 

Um dos primeiros dados é que muitos desses pacientes, oriundos da Villa 31, são imigrantes: Paraguaios, Peruanos, Colombianos, Venezuelanos e, principalmente, Bolivianos. Já faz muitos anos que acontece a migração em massa de latino-americanos à Argentina, especialmente para trabalhar. O fato de que eles são uma grande parte desses pacientes, já demonstra a vulnerabilidade de quem migra. Outro dado, é que a maioria dos habitantes da Villa 31 que foram ao hospital, não tiveram a possibilidade de fazer isolamento social, pois não puderam deixar de sair para trabalhar. Portanto, ao estarem mais expostos ao vírus, a contaminação ocorreu rapidamente.

Uma vez que os habitantes da vila vivem, no geral, com mais de oito pessoas dentro da mesma casa, logo a transmissão se tornou uma bomba-relógio. Se no começo da pandemia se atendia no hospital Fernandez, uma média de 45 pessoas por dia, com o aumento dos casos, os médicos começaram a atender 60 pessoas, e nos finais de semana, esse número poderia chegar até 150 por dia.     

Nessa época, juntamente com essa situação no hospital relatada por Paloma, começou a faltar água na Villa 31, foram cerca de doze dias sem abastecimento – no meio de uma pandemia! Levando em consideração o risco, o governo municipal pouco fez para resolver o problema, e logo a situação se descontrolou. Nessa época acabou morrendo de coronavírus, Ramona Medina, uma importante porta-voz da Organização social “La Garganta Poderosa” e referência no bairro. Além de sua longa trajetória política, ela fez um vídeo no dia 03 de Maio, acusando o vice-prefeito Diego Santilli, de mentir sobre o desabastecimento de água na vila, e se mostrava preocupada com o contágio do vírus no bairro. Duas semanas depois, Ramona morreu do que mais temia. 

Ramona Medina. Foto: La Poderosa.

Diante desse cenário, não demorou muito para que acontecesse a mesma coisa com outro dirigente social do bairro: Alejandro Giracoy. A situação chamou a atenção dos meios de comunicação e foi televisionada em todo o país. A partir dessa repercussão, o presidente argentino Alberto Fernández fez uma reunião com o diretor da Garganta Poderosa e disse que lamentava muito a perda de Ramona Medina. A ação foi vista por alguns como uma manobra política, uma vez que a prefeitura de Buenos Aires, a verdadeira responsável pela má-gestão da pandemia na Villa 31, é gerida pelo partido opositor do presidente. Independente da motivação que possa ter levado o líder argentino a receber líderes da Villa 31, o encontro ajudou a reavivar o debate sobre a contenção de doenças nos bairros populares durante a pandemia.

Covid-19 chega às comunidades indígenas e camponesas

Por mais importante que seja a Villa 31, e que sua condição durante a crise sanitária do coronavírus possa traçar paralelos estruturais relevantes para entender como a sociedade argentina é impactada nesse momento, ela não é suficiente. Em virtude de que a Argentina é um país muito centralista, pois é necessário ir a Buenos Aires para ter acesso a muitos produtos, serviços e inclusive estratégias políticas. Dessa maneira, as províncias são vistas, muitas vezes, com pouca relevância ou tratadas isoladamente, já que grande parte da população do país vive na província portenha. 

Nesse sentido, a trajetória de Paloma, também poderá nos ajudar a pensar a realidade da pandemia no restante do país, porque depois de trabalhar até setembro no hospital Fernández em Buenos Aires, ela começou sua residência médica em clínica geral, no hospital Junín de los Andes, na pequena cidade com o mesmo nome, na província patagônica de Neuquén. O município contém 16 mil pessoas, nas quais uma pequena parte vive na zona urbana, e a grande maioria na zona rural. Certamente, um contexto bem diferente de Buenos Aires. Paloma conta que mesmo a pandemia tendo começado em março, apenas em setembro começou a haver casos na região.

 Esse fato se deve a que por muitos meses as fronteiras provinciais e também intraprovinciais da Argentina estiveram fechadas. Tal medida foi muito criticada por parte da população, porém casos como o de Junín de los Andes, mostram como tal medida foi exitosa. Além da liberação das fronteiras, que ocasionou em uma maior disseminação do vírus, principalmente de Buenos Aires em direção às províncias, em todo o país há a sensação de que as pessoas estão muito cansadas das medidas e acabaram relaxando no cuidado. 

Esse relaxamento foi particularmente exacerbado durante as festas de fim de ano, e o resultado não poderia ser diferente: acabou gerando o aumento de casos. Nas duas primeiras semanas de janeiro, o contágio contabilizado passou de ao redor de 15 novos casos diários para 50. Ao dar uma olhada na página do Facebook do hospital, onde atualizam os dados diariamente, podemos ver que, em Fevereiro, os contágios contabilizados estão variando de 10 a 30 pessoas por dia.  Atualmente, no total, são 2.060 infectados e 28 mortes. 

A estrutura no hospital Junín de los Andes é pequena, sendo proporcional à população que atende. Segundo Paloma, há apenas 30 leitos para internação. Portanto, o aumento do contágio não deixa de ser preocupante. Aqui não poderemos falar de favelas, vilas, porém, podemos ver outra desigualdade que é muito presente no país platino: a desigualdade entre o campo e a cidade. Paloma afirma que a grande maioria dos pacientes vem de áreas rurais, o que dificulta o acesso deles ao serviço de saúde. 

 Outra questão que apareceu é que Paloma afirma que ao começar sua jornada laboral, ao olhar para o quadro de pacientes, vê que a maioria dos sobrenomes dos internados está em mapudungun. Isso significa que a grande maioria dos infectados por Covid em Junin de los Andes, são mapuche (etnia indígena da região), ou descendentes de mapuche. A partir desse cenário, podemos relevar outro fato importante da pandemia na Argentina, e que tem sua manifestação em toda a América Latina: a chegada preocupante do vírus nas comunidades indígenas e camponesas. 

Mulher Mapuche. Foto: Reuters/J. L. Saavedra

A partir desse panorama, se a vacinação massificada não ocorrer o quanto antes é possível prever em um futuro próximo, infelizmente, o ataque pelo vírus a todas essas populações mais vulneráveis, que são a maioria na América Latina. Imigrantes, habitantes das favelas e dos bairros populares, camponeses, indígenas e suas famílias. Ao presenciar tantas pessoas internadas, Paloma me disse uma frase, sobre quando trabalhava no hospital em Buenos Aires, e isso ficou em minha cabeça: “Eu via como caíam, um atrás do outro, como em todas as vilas do continente”. 

Resistências locais

Realmente a luta é entre a vida e a morte, e entre a saúde e a doença. E essas situações relatadas por Paloma, por mais que a Argentina tenha conseguido de maneira exitosa frear a contaminação por um tempo, a longo-prazo deixa evidente o aspecto desgarrador e cruel da desigualdade no país, demonstrando a sua vulnerabilidade estrutural.  

A população argentina, acostumada com crises e privações, não ficou parada, e é muito motivador ver as ações coletivas e sociais que são feitas para mitigar os efeitos da pandemia. Com longa tradição e experiência os “comedores populares” (restaurantes populares) e as “ollas comunes” (panelas comunitárias), são iniciativas da sociedade civil, que se encontram em quase todo o território nacional, onde pessoas doam financeiramente e trabalham de maneira voluntária, para alimentar parte da população sem recursos, e que com a pandemia ficou em situação ainda pior. Conversando com amigas que trabalham nessas iniciativas é nítido perceber que aumentou muito a quantidade de pessoas buscando alimentos. 

Nesse sentido, apesar das grandes dificuldades e vulnerabilidades, a sociedade não deixa por vencido, e escolhe seu lado da batalha: quer viver. Se sabe das grandes dificuldades financeiras que o país tem, mas é necessário que o governo apoie de maneira ainda mais contundente, essas iniciativas, e quem sabe, em um futuro, possamos começar a mudar essa vulnerabilidade estrutural a que a Argentina está submetida. 

Imagem em destaque: Juan Ignacio Roncoroni.

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