entre o fique em casa e as canetadas desumanas dos despejos

Mesmo com a crise sanitária mundial, a ganância da especulação imobiliária continua mitigando o direito à moradia a quem se encontra em vulnerabilidade social.

Lembro que lá no começo da pandemia da covid-19 havia um ar de esperança de que este momento serviria para uma “pausa reflexiva”. A ideia, ao ter a vida colocada em xeque por algo fora do nosso controle, despertaria humanidade, solidariedade e compaixão. Que eventualmente deixaríamos de lado a ganância para pôr a necessidade coletiva, de se proteger e proteger o próximo, no pódio das prioridades. “Fiquem em casa! Fiquem em casa!”, era o melhor a ser feito. 

Com esta máxima no topo, repetida nos jornais junto com as notícias do número de mortes subindo e subindo, eu fico imaginando o que devem ter sentido as famílias do Residencial São Marcos em Goiânia, ainda em julho de 2020, ao receberem uma notificação da prefeitura que basicamente dizia: Deixem suas casas! Esta notificação de despejo por via administrativa foi enfrentada pelas famílias, que defenderam bravamente o único espaço da cidade que podiam chamar de casa. 

Com apoio de advogados(as) populares e grupos organizados, elas denunciaram a imoralidade que seria deixá-las não só ao relento, mas ser expostas a um vírus mortal, que ninguém sabia dizer ao certo as dimensões de sua letalidade, apenas que era grave. No entanto, nenhuma humanidade foi despertada. 

Os tratores chegaram com a canetada nas ordens, sem discussão, sem compaixão, sem remorso. Deste dia no São Marcos, eu me lembro das imagens de choro de uma mulher negra com uma criança no colo, com todos os seus poucos pertences na rua ao sol, sem ter para onde ir. Estava provado: de onde vem a especulação imobiliária e a concentração fundiária, não tem o mínimo de humanidade. 

Em setembro de 2020, outra desocupação aconteceu, desta vez em Aparecida de Goiânia, no bairro Buenos Aires. Com a ordem assinada por uma única pessoa, um procurador, mais de 50 famílias ficaram sem ter um teto sobre suas cabeças. Toda a mobilização e denúncia sequer constrangeu a prefeitura a dar uma resposta ou pensar em alguma alternativa. 

Quando eu cheguei ao lugar, os barracos precários iam ao chão enquanto as pessoas tentavam tirar seus  pertences, algumas telhas e madeira para reaproveitar depois. O silêncio impotente, misturado com o rugido dos tratores, era ensurdecedor.  

Nesse dia eu conversei com uma moradora da ocupação, a Soraia, e ela disse aos prantos: “Como cidadã brasileira, a gente se depara com uma situação dessa, percebendo que as autoridades como o prefeito, como o procurador do município, não fizeram caso, não quiseram atender a gente, pra explicar que aqui a gente tem família, tem crianças. Foi muito triste ver as crianças nesse sol, as famílias tendo que desocupar as suas casas, é muito triste, muito triste. Cadê os direitos humanos?

De lá para cá, não pararam. A empreitada do poder público, aliado aos poderosos, contra as ocupações em Goiás, no campo e na cidade, ficou cada dia mais impiedosa. As decisões judiciais e administrativas no estado não paravam de chegar. 

Ocupação Fidel Castro. Foto: Ana Dirino.

Tivemos centenas de famílias ameaçadas a ficar sem terra e sem teto como as do Jardim Cerrado I (Goiânia), da ocupação no Sollar Ville (Goiânia), do Acampamento Leonir Orback (Santa Helena), do Acampamento Oziel Alves (Catalão), no Acampamento Chê Guevara (Piranhas), da Fazenda Monjolo, da ocupação em Terezópolis com 140 famílias, e da Ocupação Alto da Boa Vista (Aparecida de Goiânia) com quase 800 famílias. 

Todas essas ameaças têm em comum não oferecer nenhuma alternativa às famílias que não seja a rua, ficar entre aluguéis caros ou comprar alimentos que não param de subir os preços. 

No levantamento feito pela campanha #DespejoZero em fevereiro de 2021, estima-se que no Brasil 9.156 famílias foram despejadas e 72 mil estão ameaçadas. Só agora em maio, depois de mais de um ano de pandemia, foi aprovado na câmara dos deputados  um projeto de lei (827/2020) que impede os despejos enquanto durar essa situação sanitária. Precisa ainda passar pelo senado para valer. Até lá (e acredito que mesmo se aprovado) as incertezas permanecem e o “fique em casa” torna-se uma máxima inaplicável. 

Não posso deixar de dizer: as ocupações e a fome nesse país tem cor. São maioria de negros e negras, e muitas crianças. As ordens de despejo em Goiás denunciam tragédias,  que precisam ser paradas, como a violência às 140 famílias de Terezópolis – Goiás, ameaçadas de despejo para o próximo dia 25 de maio. 

As resistências dos territórios, as redes, impulsionam a discussão sobre a importância de enfrentar a especulação imobiliária, a concentração fundiária e o racismo que mastigam vidas negras, impõe sofrimento e ainda mais miséria. Esse texto, é sobretudo um convite: lute contra os despejos

Acampamento Oziel Alves. Foto: Foto: MST-GO.

Encerro com as palavras de Carolina Maria de Jesus, para que um dia seu desejo seja possível:

“Já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna. Terminaram a refeição. Lavei os utensílios. Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem em casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível”.

Sou Ana Dirino, militante e mestranda em Direitos Humanos na Universidade Federal de Goiás.

Imagem em destaque: Ana Dirino | Edição: Renato Silva e Ludmila Almeida.

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