Era 6 de maio de 2021, quando o Rio de Janeiro assistiu a mais um terrível dia de horror. As famílias do Jacarezinho se identificaram, sofreram e choraram a morte de 27 vizinhos e amigos numa chacina policial sem precedentes. Uma cena de causar impacto em qualquer um e mais ainda às pessoas mais pobres, periféricas, faveladas e, sobretudo, negras que convivem diariamente com a violência. 

Os jornais falaram em operação, mas logo entenderam que se tratava de uma chacina. A maior da história do Estado com a presença de agentes de segurança em atividade. Entretanto, escapou a cobertura da mídia tradicional a Chacina da Baixada, que entrou nas estatísticas mas parece ter sido esquecida. Uma matança que aconteceu em 31 de março de 2005 com 29 vítimas nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense. Na mesma região que agora, em 2021, foi contabilizado neste primeiro semestre, 32% das chacinas ocorridas na Região Metropolitana do Rio e 30% dos mortos nessas situações, de acordo com levantamento do Instituto Fogo Cruzado. Mas o que faz a Baixada se destacar quando o assunto é chacina?

Na Baixada Fluminense aconteceram 32% das chacinas ocorridas na Região Metropolitana do Rio e 30% dos mortos nessas situações. Arte e dados: Instituto Fogo Cruzado.

Antes de tudo, lembrar que a Baixada Fluminense é uma região diversa formada por 13 municípios, apesar de parecer que é uma cidade só. A maioria novos, com exceção de Nova Iguaçu, Itaguaí,e Magé – o município mais antigo da região – os outros 10 foram fundados nas décadas de 90, 60 e 40. Deles, o mais populoso é Duque de Caxias, onde vivi meus 31 anos completos e vou utilizar como exemplo para ilustrar este artigo. 

Foi lá que observei, olhando o passado e vivendo o “presente”, uma figura política repetitiva: a do político com fama de “pistoleiro” ou “matador”. Seja o Tenório Cavalcanti – o homem da capa preta -, seja o ex-prefeito José Camilo Zito – acusado de assassinato e diferentes crimes -, ou seja o policial civil e político, Maluco Beleza: fato é que a figura do “justiceiro” acompanha diversos atores políticos naquela região.

Em 5 anos, 26 políticos foram mortos e outros 6 ficaram feridos, na Baixada Fluminense. Arte e dados: Instituto Fogo Cruzado.

Caxias, segundo o IBGE, possui 924 mil habitantes e não faltam casos de políticos executados. Nos últimos 5 anos de monitoramento do Instituto Fogo Cruzado, 3 políticos foram mortos no município. Se olharmos para a Baixada como um todo, 26 morreram e outros 6 ficaram feridos por armas de fogo,  o que confirma a fama de historicamente ter representantes ligados a assassinatos e grupos de extermínio. Somado ao conservadorismo político, a Baixada Fluminense tem forte presença do fundamentalismo religioso, e estes fatos parecem estar diretamente ligados à presença de um Estado “diferente”.

Milícia e Baixada Fluminense: uma relação íntima

A organização Direito à Memória e Justiça Racial, que atua com ações de enfrentamento à violência de Estado, publica relatórios com dados mostrando a ação e expansão das milícias em Caxias, na Baixada Fluminense e em todo o Rio. O Boletim IDMJR 2020, informou que grande parte das áreas urbanas de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Queimados já são dominadas por diferentes milícias. 

Em entrevista, a coordenadora da IDMJR, Giselle Florentino, disse que esses grupos não são sequer paralelos ao Estado e sim parte dele. “Se a gente for ver as grandes lideranças das milícias, são agentes ou ex-agentes de segurança. Então a milícia chega no território com um véu de legalidade institucional do Estado”. Ela lembra também como isso é naturalizado diante da população. “Esses grupos de milícias não homogêneos falam ‘nós vamos tirar a boca de fumo da sua rua’, ‘nós vamos garantir sua segurança privada”.

Se levarmos em conta tudo isso, vamos começar a entender porque os dados do Instituto Fogo Cruzado apontam a Baixada Fluminense como destaque nestes eventos. De acordo com o relatório do primeiro semestre de 2021, os casos de chacina na região aumentaram seis vezes, e o número de mortos civis cresceu em oito vezes. Enquanto a Zona Sul da capital registrou queda total desse tipo de crime e a Zona Oeste caiu 20% nesse período em comparação aos mesmos meses em 2020.

Outro dado importante do relatório “Operações Policiais na Baixada Fluminense” da IDMJR, é que 85% das pessoas presas em operações policiais pertenciam ao Comando Vermelho e outros 15% pertenciam à milícia “A Firma”. O período de referência é 6 de junho de 2020 à mesma data de 2021, que coincide com o primeiro ano da ADPF 635, a ADPF das Favelas. 

O mesmo levantamento aponta caminhos para vencer o avanço das milícias e acabar com as chacinas na região. Entre eles estão: fomentar o debate e a construção de uma política de enfrentamento às drogas na perspectiva da saúde pública; a criação de um “Observatório de Controle das Polícias” com a participação das secretarias de polícias, do Ministério Público Estadual, da Defensoria Pública do RJ, dos movimentos e organizações sociais. Estas e outras alternativas devem servir como ponto de partida para a sociedade dar mais atenção ao tema e pressionar o Estado a se mover na direção contrária à das milícias.

Esse artigo faz parte do lançamento do relatório semestral do Instituto Fogo Cruzado sobre violência armada no Rio de Janeiro.

Bastidores do FP

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