
Apenas 10% da população trans/travesti tem acesso à possibilidade de um emprego formal
O debate sobre o que é direito básico ou privilégio pode nos tomar um tempo diariamente, quando observamos diversos fatores dentro da nossa sociedade. Ser reconhecido pelo seu nome e ter uma documentação que te valide em esferas civis pode ser visto como um direito básico e inquestionável, mas infelizmente não é essa a realidade de muitas pessoas trans/travestis e transgêneros no nosso país. Hoje, dia 29 de janeiro, é celebrado o Dia da Visibilidade Trans, em referência à luta de travestis, transexuais e trangêneros no Brasil. Pensando nisso, batemos um papo com algumas pessoas que precisaram recorrer à justiça em busca de seus direitos.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que pessoas trans/travestis têm o direito de solicitar as devidas alterações em seus documentos, como nome e gênero, independentemente de ter passado por procedimentos cirúrgicos para a redesignação sexual ou tratamentos hormonais. De acordo com a decisão, qualquer pessoa interessada poderá recorrer ao cartório em que foi registrado para solicitar essas alterações. Além disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu que as pessoas interessadas podem solicitar as alterações nos cartórios de todo o país sem a presença de advogados ou de defensores públicos.
Apesar das decisões judiciais parecerem favoráveis à população que precisa passar por esse processo de retificações, existe um sistema que colabora com a demora na tramitação, que impossibilita essas pessoas a serem vistas e respeitadas como querem. Segundo Nathan Silveira, 24 anos, estudante, a realidade é muito diferente e burocrática.
“Eu fiz a retificação através do NUDIVERSIS (Núcleo de Diversidade da Defensoria Pública do Estado do RJ). Para mim, a parte mais difícil foi ter que ir em dezenas de cartórios, reunir dezenas de documentos, baixas, certidões, a maioria das quais eu nem sabia que existiam. Em todos esses locais eu tinha que explicar o motivo da retificação e as pessoas não estavam preparadas para me atender. Tive que ouvir comentários dos funcionários e me senti vulnerável a passar por transfobias. Conheço duas amigas minhas, travestis que estão na luta há mais de 1 ano para conseguir retificar, pois elas moram no Rio de Janeiro, mas nasceram em outros estados e não estão conseguindo acompanhar o processo a distância (os cartórios não atendem telefone, não respondem aos e-mails, ninguém sabe do processo). Já vi isso acontecer em muitos casos.” relata.

Ter a documentação de acordo com a sua identidade e expressão de gênero possibilita a inclusão dentro da sociedade. No acesso a serviços básicos, Nathan diz que acredita que ainda falta muito para o “mundo ideal” e que tem um caminho grande a ser percorrido pela população trans e travesti no país. “Eu sempre usei meu nome de verdade no currículo, eu me chamo Nathan. Se tudo desse certo, na hora de mostrar os documentos eu explicava que ainda estava em processo de retificação. As pessoas não sabem como reagir, não querem nos respeitar. Os documentos retificados me protegem de muitas situações de transfobia, inclusive, na entrada de festas, cinemas, museus e unidades de saúde. Sempre gerava problemas o fato do nome do documento não condizer com minha aparência. Já passei por situações muito constrangedoras por conta disso.” desabafa o estudante.
Ter a documentação retificada ainda não é a realidade da maioria das pessoas trans/travestis no Brasil. No caso de Igor Caeiro, 24 anos, estudante universitário, o processo ainda não foi concluído.
“A minha transição social começou em 2017-2018 e fui começar a transição física com testosterona em setembro de 2019. A retificação oficial eu não realizei ao mesmo tempo, embora tenha adicionado meu nome social em todos os documentos e ambientes possíveis (RG, CPF, cadastro em banco, estágio, plano de saúde…).” relata o estudante.
Apesar dos trâmites burocráticos para a regularização dos documentos, Igor relata que é comum acontecer alguns erros que são percebidos na hora da entrega, o que acaba gerando um retrabalho.

“Eu ainda não possuo minha documentação retificada e pretendia resolver este assunto antes de me formar na faculdade. Das pessoas que eu conheço e que fizeram o pedido, todas eventualmente conseguiram a certidão retificada. No entanto, alguns conhecidos precisaram pedir revisão dos dados, geralmente porque mudaram (ou esqueceram de mudar) o sexo” desabafa.
Empregabilidade Trans
Nos últimos anos, o debate sobre a inclusão de pessoas trans e o compromisso pela diversidade dentro das empresas tornou- se comum. No entanto, a realidade vivenciada por quem busca oportunidades, é que por mais que as empresas ofereçam cargos bem remunerados e com assistências, ainda há a segregação de quem pode ou não ocupar determinados cargos.
Yara Furtado, 28 anos, trabalha como assistente administrativa em uma multinacional no Rio de Janeiro. Para ela, estar dentro de uma empresa, em um emprego formal, ainda é algo que pode ser lido como privilégio.
“Me vejo de alguma forma numa posição de privilégio em comparação com outras mulheres trans. Acredito que ter tido a oportunidade de ter acesso ao ensino superior fez diferença. As empresas estão com políticas de diversidade, mas essas políticas são muito voltadas para pessoas com ensino superior e inglês a partir do intermediário. O que não é a realidade da maioria das mulheres trans.”

O relato de Yara reforça a necessidade das empresas entenderem que para pensar na inclusão é preciso olhar para a possibilidade de ofertar capacitação para os cargos, afinal, se de fato existe um objetivo de mudar a realidade de pessoas trans/travestis, será preciso também criar novos caminhos para isso.
No Brasil, a empregabilidade para pessoas trans é uma realidade extremamente complicada. Apenas 10% têm carteira assinada em um emprego formal, segundo a pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Fator que dá conta de explicitar o porquê dos outros 90% buscarem na prostituição uma forma de se sustentar.
Yara diz que a família é um lugar de apoio, e quando perguntada sobre sua expectativa para os próximos 10 anos, disse: “Considero minha família apenas minha mãe, irmã e namorada e todas sempre me apoiaram. Nem sempre foi assim, no começo houve aquele desentendimento, mas logo foi superado pela minha mãe. Daqui a 10 anos me vejo casada com a minha namorada e sendo feliz. Meu maior sonho é viver num mundo em que as pessoas sejam livres para viver e amar.”.
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