Do sonho pela liberdade à massacres por terra

Abril é um mês de luto e de luta. De luto pelas trabalhadoras e trabalhadores massacrados ao longo da história. E de luta para continuar o movimento em prol da terra e do direito à vida digna. 

O dia nacional de luta pela Reforma Agrária (17) é marcado pelo massacre no assentamento de Eldorado do Carajás, em 1996. Uma chacina, realizada pela Polícia Militar, que resultou na morte brutal de 19 trabalhadores sem terra no Estado do Pará. Na época, o governo de Fernando Henrique foi obrigado a reconhecer a data não só como homenagem à memória das vítimas desse episódio, mas também como o dia de luta pela Reforma Agrária. Isto, considerando o Brasil como um dos países que mais concentra terra no mundo e ainda se pauta em uma política agrária de base colonial.

O crime, cometido há 25 anos, na chamada “curva do S”, ainda se encontra impune e simboliza o quanto os conflitos agrários no país são negligenciados. Neste caso, dos 155 policiais envolvidos, foram condenados somente Mário Pantoja e José Maria de Oliveira, comandantes da operação, que cumpriram pena em liberdade. Conforme relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 e 2020, 1.973 pessoas morreram em conflitos de terra no Brasil, num total de 1.496 casos, que levaram a 122 julgamentos. Destes, resultaram 141 condenações de mandantes e executores, e 224 absolvições. Os estados com mais vítimas foram Pará (738), Maranhão (172) e Mato Grosso (145). 

A região amazônica concentrou 73% das tentativas de assassinato, 79% das ameaças de morte e 71% das famílias expostas a conflitos. Nesta região também estavam 57% das 5.877 famílias despejadas de seus lares e 84% das que tiveram suas casas ou terras invadidas. O levantamento da CPT ainda revela que o Brasil registrou, em 2019, 1.833 conflitos no campo. Em relação a violência contra a ocupação e a posse, foram registradas 1.254 ocorrências, com 144.742 famílias envolvidas, 39.697 invasões policiais e 25.546 ameaças de despejo.

Velório dos mártires do Eldorado do Carajás – 1996. Foto: Sebastião Salgado.

Apesar da Reforma Agrária ser uma política prevista na constituição, o processo ainda é lento e marcado por muita violência. Historicamente, isso se tornou regra e tem fundamento na escravização e colonização, como explica o professor Ubiratan Francisco, geógrafo, professor doutor e pesquisador da Universidade Federal do Tocantins (UFT) no curso de Educação do Campo. “A origem dos problemas agrários e da distribuição de terra no Brasil está ligada à escravidão. Durante 388 anos, o regime escravocrata colonial estabeleceu, no Brasil, uma economia agrária, baseada na agricultura, no extrativismo e na mineração. A terra foi tida como principal meio de produção no Brasil, considerada a riqueza e a dignidade do homem e da mulher. Naquela época, ser um homem e uma mulher digna, com condições de viver em sociedade, era ter uma terra”.

Ainda de acordo com o documento da CPT, a categoria que mais sofreu com as tentativas de desterritorialização provenientes do Estado foi os Sem Terra, representando 46,67%. Em seguida, foram as famílias posseiras, com 23,25%, e as comunidades tradicionais, com 22,86%. Já com relação às tentativas de expulsão protagonizadas pelo poder privado, as comunidades tradicionais foram as que mais sofreram este tipo de violência, correspondendo a 45,76%. Em seguida, foram as famílias posseiras, com 30,50%, e as famílias Sem Terra, com 16,10%. 

“Juntando todos os acampamentos, de todas as organizações, são quase 200 mil famílias que vivem nas condições mais adversas na beira da estrada”, diz João Paulo Rodrigues, um dos dirigentes nacionais do Movimento Sem Terra (MST).

O racismo é o que movimenta as decisões da elite agrária, afirma pesquisador

“Terra é poder”, como ressalta o pesquisador Ubiratan. E isto moveu as estruturas agrárias do país, antes mesmo da abolição da escravatura, em 1888. Prevendo maneiras de impedir que negros e indígenas acessassem o direito à terra, os fazendeiros, junto a coroa, aplicaram a Lei de Terras de 1850. Ela foi aprovada no mesmo ano em que a Lei Eusébio de Queirós foi instaurada – lei que proibia o tráfico negreiro e sinalizava a abolição da escravatura no Brasil após a pressão britânica. Pela lei de terras, a aquisição só poderia ser feita por quem provasse que já era dono da terra e podia comprar o lugar. “A ideia de se imaginar um negro ou uma negra possuindo terras era inadimissível, já que, antes, aquela mesma pessoa trabalhava e gerava renda de graça para o senhor fazendeiro”, pontua.

Construir uma sociedade que estabelecesse a imobilidade social, não só de classe, mas também entre negros e brancos, foi crucial para que a Reforma Agrária não ocorresse logo após a abolição. “Terra era o sonho de liberdade e independência econômica. Imagine o Brasil daquela época, com quase 10 milhões de pessoas, 5 milhões de população preta, africana, aproximadamente 3 milhões de indígenas, e 1,7 milhões –  não chegava a 2 milhões – de brancos. O conhecimento da terra estava ou nas mãos dos negros e negras, ou nas mãos dos indígenas. Se eles tivessem acesso à terra, eles teriam, inclusive, o controle da sociedade brasileira”, diz o professor.

A estrutura racista ainda resiste. Dados mostram que, quanto maior é o território, maiores são as chances do proprietário ser branco. De acordo com o Atlas do Espaço Rural Brasileiro (2020), com base no Censo Agro 2017, cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores declarados como brancos, em relação aos produtores negros (50,4%), indígenas (0,8%) e amarelos (0,6%). Entretanto, quando se analisa o tamanho territorial, em estabelecimentos de mil a 10 mil hectares, há mais que o triplo de proprietários brancos (74,7%), face aos negros (23,8%); e quando o espaço compreende mais de 10 mil hectares, a proporção desses grupos é de 79% para brancos e 18,9% para negros.

Os massacres por terra são acontecimentos recorrentes ao longo da história do Brasil

É projeto da nação brasileira fomentar a industrialização e manter o poder agrário nas mãos da elite oligárquica. Somos um dos países que mais concentram terra no mundo: segundo estudo da Oxfam que analisa a distribuição de terras na América Latina, no Brasil, 45% da área rural está nas mãos de menos de 1% do número de propriedades.

“O Brasil passou por várias revoltas, Cabanagem, Balaiada, Palmares, Canudos, um monte de revoltas aconteceram no país. E em todas essas revoltas a pauta sobre direito de ter uma terra, a vontade de ter uma terra, estava presente”, afirma Ubiratan. “E eram de populações negras, negros, indígenas e os chamados mestiços que estavam ali lutando para ter uma terra. Aí, quando estabelecia uma sociedade alternativa, mesmo que seja Canudos, que tinha um perfil messiânico, mas o quê que era aquilo ali? Canudos não foi destruída à toa, mas porque era uma sociedade alternativa em que aquelas pessoas teriam acesso à terra, um lugar para viver independente da opressão do Estado brasileiro”.

O professor ainda conta que, com a escravização e colonização, a terra foi tida como o principal meio de produção, de forma que a fazenda era o grande centro das decisões políticas e até religiosas. “Negros e indigenas não poderiam ter acesso a terra, ter acesso a terra seria uma revolução”, ressalta. Para consolidar o projeto de modernização e industrialização do país, grandes infraestruturas, como as ferrovias, começaram a provocar mais mudanças na dinâmica social por onde passavam. Uma das revoltas que enfrenta esse modelo social, foi a Revolta do Contestado, organizada, conforme descreve o professor Ubiratan, por cablocos – filhas e filhos de indigenas com negros -, nos anos de 1912 a 1916, nos Estados de Santa Catarina e Paraná. Só aqui, mais de 10 mil pessoas foram massacradas por estarem defendendo sua terra, os recursos naturais e sua forma de viver.

Família de sertanejos se rende às forças oficiais em Canoinhas – SC em 1915.
Foto: Agência Senado.

Outra revolta que o professor cita é a de Trombas e Formoso, que aconteceu em meados da década de 1950. Foi uma resistência armada de camponeses do norte do Estado de Goiás que rebelaram-se contra o processo de expropriação de terras e cobrança de taxas por um grupo de grileiros, com o aval do governo do Estado. Um dos líderes desta revolta, José Porfírio, foi o primeiro camponês na história do Brasil a se eleger deputado. 

A Solidariedade que vem do campo e combate à fome 

Além de promover a geração e circulação de renda para os pequenos agricultores, a solidariedade também é base de quem luta pela terra, como o MST. “Nós, colocamos a terra conquistada a serviço daqueles que mais precisam. Então, principalmente, nesse ano na pandemia, nós pudemos doar muita alimentação nas comunidades e periferias, fizemos marmitas nos nossos espaços de assentamentos, escolas e Armazéns do campo”, conta Marina dos Santos, uma das dirigentes nacionais do MST, durante coletiva de imprensa.

Segundo pesquisa feita, ao final de 2020, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mais de 116,8 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar ou passando fome no Brasil. Destes, cerca de 43 milhões (20,5% dos brasileiros) não contavam com alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões da população (9%) estavam passando fome. Quase o dobro do registrado em 2018, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou 10 milhões de brasileiros nessa condição. 

“A gente tem muito medo da pandemia, como todo mundo, mas nós acreditamos que a fome mata tanto quanto o vírus. Nós não podemos ficar de braços cruzados durante uma pandemia, porque a fome não espera. Esse dia em que marca a luta pela terra, em repúdio pelo assassinato dos nossos dezenove companheiros em Eldorado dos Carajás, o MST pratica a solidariedade. Nós somos a favor da vida, não da morte. Esse governo genocida é a favor da morte, nós somos a favor de educar, pois é assim que se vive em solidariedade”, conta Dina Camponesa, Sem terra e integrante da Associação Comunitária Humanista de Agroecologia de Ipameri – Goiás.

Primeira foto: Ação de solidariedade do MST/GO, com doação e compartilhamento de alimentos, marca o Dia Internacional de Luta Camponesa. Créditos: Edson Francisco. Segunda e terceira foto: Ações de distribuição de alimentos cultivados nos assentamentos. Foto: Divulgação.

A nossa resposta está aqui: enquanto eles matam, nós distribuímos alimento, nós praticamos a solidariedade. Não é porque temos muito, mas porque o pouco que temos, nós fazemos multiplicar e compartilhar com os trabalhadores e trabalhadoras da cidade”.

Edson Francisco, Dirigente da regional Dorcelina Folador – MST/GO
“Se o campo não planta, a cidade não janta”

Dados do Censo Agropecuário 2017-2018, realizado pelo IBGE, revelam que 76,8% dos 5,073 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil foram caracterizados como pertencentes à agricultura familiar. Segundo o levantamento, a agricultura familiar também emprega mais de 10 milhões de pessoas, o que representa 67% do total de pessoas ocupadas na agropecuária. 

“A nossa terra tem como prioridade a produção de comida. A nossa terra não é para produzir commodities para exportação, mas sim para produzir alimentos. Essa é uma das bases dos nossos assentamentos, da nossa terra, das terras que estão na mão dos assentados”, afirma Marina.

A Reforma Agrária visa combater as violências e promover qualidade de vida, não só para quem está no campo, mas também para quem está na cidade. Na contramão do projeto de desenvolvimento do governo, o que o Movimento busca é a recuperação e a preservação ambiental. “Então, desde a preservação das áreas, das matas, florestas, mananciais nos nossos assentamentos. Nós também queremos produzir, plantar 100 milhões de árvores nos próximos 10 anos. Então, essa é uma meta, objetivo, com planejamento em todo o país, de acordo com os biomas de cada região, e de preferência que sejam árvores frutíferas, também nessa linha de produzir comida”, finaliza a dirigente nacional do MST.

“Se o campo e a cidade se unir, a burguesia não vai resistir!”
Grito de ordem do MST

Matéria realizada pelas reportes Júlia Barbosa e Ludmila Almeida
Coletivo Magnifica Mundi

Edição: Renato Silva

*Imagem em destaque: João Gabriel Palhares.

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