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Bolsonaro relaciona o acesso à água com jogo de sorte e azar

Ao inaugurar uma nova etapa da Adutora do Agreste no sertão pernambucano, em São josé do Egito, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) comentou que para os habitantes do local ter água é como ganhar na Mega-Sena. Seria essa uma questão de sorte ter acesso a esse recurso no semiárido nordestino? Esse tipo de afirmação fortalece a Indústria da Seca, que sofre fortes críticas por especialistas das áreas sociais e geográficas. Eles acreditam que, ao contrário de como é vendida, não traz soluções permanentes para área e faz manutenção dessa dependência regional.

O coração do nordeste tem o clima seco e quente, pouca chuva e estiagens severas. Tem muita gente habitando, diferente de outros locais semelhantes pelo mundo, e muitas famílias tradicionais perpetuando latifúndios poderosos. Para o professor Caio Maciel, do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), as questões do semiárido são de ordem climática e demográfica, mas também sociopolítica e que não se pode vender a ideia de que somente grandes obras como transposições e adutoras são as soluções para lidar com essa região.

As questões sociopolíticas são o grande xis da questão. “Mesmo se a gente fazer várias transposições, interligar todos os rios do  nordeste como um, não tem água suficiente para tantas terras e nem toda terra é agricultável. Tem muita área pedregosa, muita área salgada”, comenta Caio.  “Então, você vender a solução para o semiárido brasileiro como uma mega solução de irrigação é você estar repetindo o passado e vendendo uma falsa solução, porque não dá”, finaliza.

O professor se refere aos tempos em que os grandes latifundiários faziam do acesso à água e outros serviços básicos de moeda eleitoral para manterem sua relevância para a região. As estiagens e períodos sem chuvas eram pratos cheios para uma atuação incompleta e pouco preocupada com a vida a médio e longo prazo dessas pequenas famílias que rondam suas terras. Um costume que vem desde os tempos de Império, nada de muito inédito pra quem vive por essas bandas.

Foto de Alexandre Severo

O cenário mudou quando ONGs, movimentos sindicais e igrejas passaram a estudar e implementar formas de conviver com o semiárido e buscar alternativas à Indústria da Seca. As cisternas são os maiores símbolos dessa movimentação, chegando a se tornar programa de governo a partir do primeiro Governo Lula. Com elas, um milhão de famílias deixaram andar por quilômetros ao sol em busca da água e a tinham com qualidade dentro de casa. Essa solução junto com outros programas de distribuição de renda e apoio à agricultura familiar, como o Bolsa Família e o Seguro Safra, foram tão importantes que tiveram influência direta na saída do Brasil do mapa da fome em 2014.

Cidadania de segunda classe

Mas o enfraquecimento desses programas alinhado com o fortalecimento da Indústria da Seca é o cenário nacional atual. Antônia Montenegro, professora de política e sociologia da PUC Minas, chama atenção ao fato do discurso feito pelo presidente na inauguração da nova etapa da Adutora do Agreste dialogar diretamente com a noção de cidadania de segunda classe trazida por Wanderley Guilherme dos Santos.

Para a professora , além do tom de desrespeito e deboche, faz parecer como se a ação fosse mais bondade do que dever  do Estado, pois todo brasileiro paga impostos e é sujeito de direitos, constitucionalmente, assistidos. “Alguns são mais cidadãos do que outros, entende? Então a esses grupos não são dadas plenas condições para que ele possam se realizar com cidadãos na plenitude, sempre são cidadãos de segunda classe. É o que resta, o que sobra, é pontual, é paliativo”. 

Os cidadãos de segunda classe estão por todo lugar. Nas grandes cidades é possível identificá-los através das mesmas faltas do semiárido nordestino: falta de acesso a água tratada, educação, saúde, renda. Em se tratando da região Nordeste, o imaginário da seca trazido pelas literaturas oitocentistas e requentada inúmeras vezes pelos meios de comunicação cristalizou o nordestino como um eterno coitado. “A manutenção de um povo que sempre precisa ser salvo significa também a manutenção de um herói”, como afirma a jornalista, também professora e pesquisadora da UFPE, Fabiana Moraes em texto escrito para a Agência Pública em novembro de 2019, quando toneladas de óleo aportaram nas praias do nordeste.

O sertão são muitos

Em 2009, no centenário de morte de Euclides da Cunha, escritor de ‘Os Sertões’, um marco importante na literatura brasileira que inaugura o gênero livro-reportagem, Fabiana escreveu uma reportagem especial para o Jornal do Commercio contando sobre outros nordestinos, antes de tudo fortes, além dos que Euclides encontrou aqui. Para isso, ousou contar a história de personagens nem sempre lembrados quando se trata da região.Também tem Juventude, Hip Hop, pessoas assumidamente LGBTQIA+, agricultores de maconha e mulheres vaqueiras no Sertão!

Foto de Yana Parente
Foto de Yana Parente

Pernambuco, Ceará, Alagoas e Bahia foram os estados onde vivem essas pessoas: “A ideia era falar de maneira mais ampla e menos marcada. Eu sentia que mesmo senso nordestina, havia uma construção midiática muito pobre acerca do sertão e eu estava interessada em ir lá e ver um pouco do que é”, conta a jornalista. Os Sertões recebeu o Prêmio ExxonMobil de 2009, à época Prêmio Esso, e se tornou livro.

Essas personagens nos dão um pouco da dimensão do quanto a vida no semiárido é diversa e que, por isso, fazer de uma única proposta a solução para a região é impreciso. Ainda nessa linha de pensamento, é importante que a seca deixe de ser vista como vilã, porque estamos falando da natureza. “a gente tem o famoso Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, desde o século XX. É um órgão do governo cujo nome é Denocs e existe até hoje. Você não pode fazer um departamento de obras contra o oceano, por exemplo”, provoca o professor Caio.

Foto destacada por Isac Nóbrega*

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