
Bolsonaro relaciona o acesso à água com jogo de sorte e azar
Ao inaugurar uma nova etapa da Adutora do Agreste no sertão pernambucano, em São josé do Egito, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) comentou que para os habitantes do local ter água é como ganhar na Mega-Sena. Seria essa uma questão de sorte ter acesso a esse recurso no semiárido nordestino? Esse tipo de afirmação fortalece a Indústria da Seca, que sofre fortes críticas por especialistas das áreas sociais e geográficas. Eles acreditam que, ao contrário de como é vendida, não traz soluções permanentes para área e faz manutenção dessa dependência regional.
O coração do nordeste tem o clima seco e quente, pouca chuva e estiagens severas. Tem muita gente habitando, diferente de outros locais semelhantes pelo mundo, e muitas famílias tradicionais perpetuando latifúndios poderosos. Para o professor Caio Maciel, do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), as questões do semiárido são de ordem climática e demográfica, mas também sociopolítica e que não se pode vender a ideia de que somente grandes obras como transposições e adutoras são as soluções para lidar com essa região.
As questões sociopolíticas são o grande xis da questão. “Mesmo se a gente fazer várias transposições, interligar todos os rios do nordeste como um, não tem água suficiente para tantas terras e nem toda terra é agricultável. Tem muita área pedregosa, muita área salgada”, comenta Caio. “Então, você vender a solução para o semiárido brasileiro como uma mega solução de irrigação é você estar repetindo o passado e vendendo uma falsa solução, porque não dá”, finaliza.
O professor se refere aos tempos em que os grandes latifundiários faziam do acesso à água e outros serviços básicos de moeda eleitoral para manterem sua relevância para a região. As estiagens e períodos sem chuvas eram pratos cheios para uma atuação incompleta e pouco preocupada com a vida a médio e longo prazo dessas pequenas famílias que rondam suas terras. Um costume que vem desde os tempos de Império, nada de muito inédito pra quem vive por essas bandas.

O cenário mudou quando ONGs, movimentos sindicais e igrejas passaram a estudar e implementar formas de conviver com o semiárido e buscar alternativas à Indústria da Seca. As cisternas são os maiores símbolos dessa movimentação, chegando a se tornar programa de governo a partir do primeiro Governo Lula. Com elas, um milhão de famílias deixaram andar por quilômetros ao sol em busca da água e a tinham com qualidade dentro de casa. Essa solução junto com outros programas de distribuição de renda e apoio à agricultura familiar, como o Bolsa Família e o Seguro Safra, foram tão importantes que tiveram influência direta na saída do Brasil do mapa da fome em 2014.
Cidadania de segunda classe
Mas o enfraquecimento desses programas alinhado com o fortalecimento da Indústria da Seca é o cenário nacional atual. Antônia Montenegro, professora de política e sociologia da PUC Minas, chama atenção ao fato do discurso feito pelo presidente na inauguração da nova etapa da Adutora do Agreste dialogar diretamente com a noção de cidadania de segunda classe trazida por Wanderley Guilherme dos Santos.
Para a professora , além do tom de desrespeito e deboche, faz parecer como se a ação fosse mais bondade do que dever do Estado, pois todo brasileiro paga impostos e é sujeito de direitos, constitucionalmente, assistidos. “Alguns são mais cidadãos do que outros, entende? Então a esses grupos não são dadas plenas condições para que ele possam se realizar com cidadãos na plenitude, sempre são cidadãos de segunda classe. É o que resta, o que sobra, é pontual, é paliativo”.
Os cidadãos de segunda classe estão por todo lugar. Nas grandes cidades é possível identificá-los através das mesmas faltas do semiárido nordestino: falta de acesso a água tratada, educação, saúde, renda. Em se tratando da região Nordeste, o imaginário da seca trazido pelas literaturas oitocentistas e requentada inúmeras vezes pelos meios de comunicação cristalizou o nordestino como um eterno coitado. “A manutenção de um povo que sempre precisa ser salvo significa também a manutenção de um herói”, como afirma a jornalista, também professora e pesquisadora da UFPE, Fabiana Moraes em texto escrito para a Agência Pública em novembro de 2019, quando toneladas de óleo aportaram nas praias do nordeste.
O sertão são muitos
Em 2009, no centenário de morte de Euclides da Cunha, escritor de ‘Os Sertões’, um marco importante na literatura brasileira que inaugura o gênero livro-reportagem, Fabiana escreveu uma reportagem especial para o Jornal do Commercio contando sobre outros nordestinos, antes de tudo fortes, além dos que Euclides encontrou aqui. Para isso, ousou contar a história de personagens nem sempre lembrados quando se trata da região.Também tem Juventude, Hip Hop, pessoas assumidamente LGBTQIA+, agricultores de maconha e mulheres vaqueiras no Sertão!


Pernambuco, Ceará, Alagoas e Bahia foram os estados onde vivem essas pessoas: “A ideia era falar de maneira mais ampla e menos marcada. Eu sentia que mesmo senso nordestina, havia uma construção midiática muito pobre acerca do sertão e eu estava interessada em ir lá e ver um pouco do que é”, conta a jornalista. Os Sertões recebeu o Prêmio ExxonMobil de 2009, à época Prêmio Esso, e se tornou livro.
Essas personagens nos dão um pouco da dimensão do quanto a vida no semiárido é diversa e que, por isso, fazer de uma única proposta a solução para a região é impreciso. Ainda nessa linha de pensamento, é importante que a seca deixe de ser vista como vilã, porque estamos falando da natureza. “a gente tem o famoso Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, desde o século XX. É um órgão do governo cujo nome é Denocs e existe até hoje. Você não pode fazer um departamento de obras contra o oceano, por exemplo”, provoca o professor Caio.
Foto destacada por Isac Nóbrega*