Equilibrando-se nas fronteiras, é preciso quebrar o mundo

No Dia Mundial do Refugiado, reconhecer os fundamentos que impedem e geram tais questões é uma base para expandir a solidariedade e construir um mundo de todos – que não é de ninguém. 

Há um provérbio africano que diz: “quando dois elefantes brigam, quem sofre é o capim”.

É muito comum nos depararmos com a questão do refúgio atrelada às guerras e aos conflitos. Não à toa, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, identifica essas pessoas como quem foge de um contexto de grave violação de direitos humanos e conflitos armados. Mas não apenas: pessoas em condição de refúgio são, também, aquelas obrigadas a abandonar o país de origem por fundado temor de perseguição seja por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Ou seja, mesmo fora de confrontos, de uma forma ou de outra, os considerados “capim” são sempre esmagados pelos elefantes.

De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR Brasil), esses conflitos e perseguições já obrigaram mais de 80 milhões de pessoas, em todo o mundo, a fugirem de suas casas. As crianças, que representam cerca de 30% da população mundial, correspondem a, no entanto, 42% das pessoas que migraram à força. Nos últimos três anos, cerca de 1 milhão de crianças nasceram no exílio. Assim, homens e mulheres, crianças e idosos que, negados ao seu direito fundamental à vida, são forçados a se deslocar para permanecerem vivos. 

O esquartejamento do mundo

O problema tem uma condição pré-existente. Ao passo que se prega a universalidade prometida pela propaganda globalizadora, fronteiras cada vez mais profundas foram fincadas entre as humanidades: entre os autoproclamados “civilizados” e os apontados “selvagens”, entre livres e escravizados, entre colonizadores e os que resistiram – e resistem – aos seus projetos de extermínio, entre nacionais e estrangeiros.

Assim foi com a pequena reunião em Berlim, em 1885, que projetou o esquartejamento da África. O que também aconteceu, séculos antes, em 1494, na pequena vila espanhola de Tordesilhas, que resultou na partilha sangrenta de uma parte de Abya Yala – nome dado pelos povos originários à batizada “América”. Simples assim, rabiscos de tinta em pedaços de papel, o mundo foi se desenhando conforme o esboço imperialista.

Os países normalmente garantem os direitos humanos básicos e a segurança física de seus cidadãos. No entanto, quando as pessoas se tornam refugiados, essa rede de segurança desaparece. Foto: ©ACNUR/Andrew McConnell.

Com o discurso da territorialização, desterritorializa-se. A tão sonhada globalização exclui a maioria da humanidade. Enquanto alguns cruzamentos de fronteira são considerados exercícios de liberdade individual, este mesmo atravessamento, porém, feito por corpos construídos como o outro, é encarado como impróprio ou ameaçador. Neste projeto, o capital e a mercadoria possuem passe livre para circular pelo mundo, enquanto corpos historicamente estigmatizados tentam se equilibrar pelas fronteiras. 

As fronteiras e o poder

Como, então, refletir o deslocamento forçado de pessoas se o direito de ir e vir têm pesos e medidas diferentes entre os cidadãos e cidadãs do mundo, e a condição de refúgio é ainda mais agravada? O controle sobre corpos e suas movimentações é entendido como demonstração de soberania de Estado, pois estas linhas ditas “imaginárias” não são apenas divisões geopolíticas, mas instrumentos para afirmação de poder – em delimitar ou eliminar fronteiras.

Com o atravessamento, uma nova fronteira é estabelecida: a de humanidade e a de sub-humanidade. A promessa da possibilidade de vida digna, que cada país lança mão de uma campanha própria, dificilmente alcança aqueles em fuga pelo mundo. No relatório Tendências Globais 2020, lançado pela ACNUR, o Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, explica que “enquanto a Convenção de Refugiados de 1951 e o Pacto Global sobre Refugiados fornecem o quadro jurídico e ferramentas para responder ao deslocamento, precisamos de muito mais vontade política de enfrentar conflitos e perseguições que obrigam as pessoas a fugir em primeiro lugar”. Ou seja, é preciso que os Estados – ou elefantes – estejam dispostos a contribuir, ativamente, para mudar esta realidade.

A pandemia e o refúgio no mundo

Mesmo que não haja um panorama concreto sobre os impactos da pandemia da covid-19 em relação ao refúgio e migração, dados do Alto Comissariado da ONU para Refugiados revelam que a chegada de refugiados e solicitantes de asilo diminuíram bruscamente – cerca de 1,5 milhões de pessoas a menos do esperado em uma realidade não-pandêmica. Isso significa que essas pessoas enfrentam vulnerabilidades ainda maiores: além de enfrentarem o vírus, continuam reféns de seus Estados e perseguições. 

Os iraquianos deslocados pelos combates em Mosul preparam comida no campo de Hasansham, no Iraque. Foto: ©ACNUR / Ivor Prickett.

Porém, o número de pessoas forçadas a fugir de violências ou guerras subiu para 82,4 milhões em 2020, sendo o nono ano de aumento ininterrupto do deslocamento forçado em todo o mundo, segundo a ACNUR. A pandemia não foi capaz, portanto, de evitar ou atenuar conflitos, mas dificultou a busca e abertura para o refúgio, com o fechamento de fronteiras, o impedimento de entrada e a ilegalidade.

Em declaração à imprensa, a Agência expôs consequências devastadoras da covid-19 para as comunidades refugiadas: “a pandemia aniquilou empregos e poupanças, causou fome generalizada e forçou muitas crianças refugiadas a abandonar a escola – talvez permanentemente. Muitas famílias relataram mandar seus filhos para o trabalho, em vez de irem para a escola, para sobreviver. Algumas meninas refugiadas enfrentaram casamento precoce forçado e um risco maior de violência sexual e de gênero”.

Brasil pandêmico e refugiados

De acordo com o Oficial de Proteção da ACNUR no Brasil, André Madureira, o impacto da pandemia nas vidas dos refugiados é evidente: “A pandemia tem um impacto muito grande no dia a dia das pessoas refugiadas, principalmente na sua integração local nas comunidades de acolhida. Elas precisam se integrar a essas comunidades, aprender o português, encontrar trabalho formal, tudo isso no contexto de isolamento”, explica o professor.

No início da pandemia, houve um monitoramento dos casos de contaminação pelo coronavírus em solicitantes e refugiados no Brasil, como parte das ações coordenadas pela Operação Acolhida, juntamente à diversas organizações, governamentais e comunitárias. Entretanto, há dificuldades em obter dados concretos, tendo em vista o tamanho continental do país, além da constante movimentação dessas pessoas pelo território nacional.

Assim, fica ainda mais evidente a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) para garantir, às pessoas em situação de refúgio, o acesso à saúde pública, bem como aos demais direitos básicos. Ainda segundo Madureira, a ACNUR, a nível global, está trabalhando com os países para que as pessoas refugiadas possam fazer parte dos planos nacionais de vacinação. No Brasil, os refugiados já estão sendo contemplados pelo plano de imunização, com os mesmos critérios dos cidadãos brasileiros. As articulações e ações conjuntas são, dessa forma, indispensáveis para o combate ao vírus, que também atravessa fronteiras.

Rememorar é necessário

A família Mata, indígenas venezuelanos Warao da Venezuela, vivem no abrigo Pintolândia em Boa Vista. Mãe de três, Dialisa, recentemente se recuperou da COVID-19. Foto: ©ACNUR/Allana Ferreira.

No dia 20 de junho, data em que se evoca o Dia Mundial do Refugiado, é importante reconhecer a questão do refúgio não apenas como uma dificuldade de fronteiras, mas como um problema de humanidade. Mais do que dados em relatórios, o mundo transborda narrativas de sofrimento, expropriações e injustiças. Esse é um mundo que tem suas bases sólidas na exploração, nas desigualdades e na dominância de um projeto de extermínio das possibilidades de existência.

Um escritor alemão, ao descrever o nascimento de uma ave, diz: o ovo é seu mundo e, para nascer, é preciso destruí-lo. Sabendo disso, para que uma outra realidade seja possível, alimentada pela utopia de um mundo sem fronteiras – utopia, sim, que em seu próprio conceito se reconhece em um imaginário sem limitações – em que é preciso a quebra do atual. Para que dessa forma a função de uma fronteira seja a de ser cruzada e não mais a de barrar corpos em busca de sobrevivência. 

Júlia Barbosa é graduanda em Jornalismo pela UFG e integra o Coletivo e Laboratórios Integrados em Jornalismo Compartilhado Magnífica Mundi. É jornalista estagiária na Cátedra Sérgio Vieira de Mello UFG, da Agência da ONU para Refugiados no Brasil.

Imagem em destaque: ACNUR / Vincent Tremeau | Edição: Renato Silva e Ludmila Almeida.

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