Cerrado

Peço licença aos meus ancestrais, às mulheres do Cerrado, em especial, à Fátima Barros, para falar de seu legado e de nossa luta.

“O tema principal era a luta pelo território”, lembra emocionada. “Ela era amor, era generosidade, era sorriso, era luz, era furacão e brisa”, descreve Helisana Barros, procurando expressar em palavras quem era Maria de Fátima Batista Barros. Vinda da linhagem de encontro entre povos africanos, originários Apinagés e Araras, quebradeiras de coco e agricultores, a filha de Vicência Barros e Cantídio Barros tomou a história nas mãos e defendeu sua ancestralidade na construção de um futuro de liberdade para os povos do Cerrado. 

Quilombola da comunidade da Ilha de São Vicente, Araguatins, região do Bico do Papagaio (TO), nas margens do Rio Araguaia, a educadora foi a primeira de sua família a ingressar no ensino superior, onde realizou graduação e pós-graduação. Era voz ativa na militância dentro da Articulação Nacional de Quilombos (ANQ), na Comissão Povos do Cerrado do Conselho Regional do Tocantins, no grupo Carolinas Leitoras, de Marabá (PA), do Coletivo Dandaras do Mato, além de coordenadora do Coletivo de Jovens lideranças da Ilha de São Vicente.

“A coragem dela foi fundamental e me ensinou muito. Ela era uma pessoa que por mais medo que tinha, ela preferia deixar esse medo guardado na gaveta e pegar ele só à noite, quando chegasse em casa. Mas na hora que saía, estava indo pro combate”, conta Maria Aparecida, que é artesã de Capim Dourado e quilombola do povoado do prata, região do Jalapão (TO), e uma das lideranças formadas por Fátima. 

Hoje coordenadora executiva na Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO), Maria, conhecida como Cida, lamentou a perda da liderança que fez diferença na vida de muitas pessoas na região e no país, devido a sua intrepidez de nunca deixar apagar a luta dos povos tradicionais e da população negra.

“Foi mais um sonho interrompido por esse vírus, mas não vamos deixar ela morrer jamais”, relata Helisana, sobrinha da liderança, educadora social, integrante do Coletivo de Jovens lideranças da Ilha de São Vicente, é agente de saúde e cursa licenciatura em computação pelo Instituto Federal do Tocantins (IFTO). Sempre que possível, a educadora esteve junto de sua tia Fátima, acompanhando as discussões em prol da existência da diversidade, a favor do acesso e permanência dos povos quilombolas, indígenas, população negra e tradicional à universidade pública. 

Uma perda sentida por todo o Cerrado, a liderança quilombola dedicou sua história a reivindicar o direito à vida para todas as pessoas lançadas à vulnerabilidade nos brasis que o Brasil não vê. Porém, o seu caminhar nesta terra foi interrompido,  se tornou semente e denúncia contra a ineficácia das políticas públicas e da garantia de saúde às populações quilombolas nessa pandemia. Recebeu o diagnóstico da covid-19, ficou mais de 20 dias internada e na manhã do dia 6 de março, aos 48 anos, fez sua passagem. 

Encontro da Teia dos Povos e comunidades Tradicionais do Maranhão. Foto Eanes Silva.

“Que a força de Iansã seja a nossa voz. Nós somos o povo Bantu, nós não morremos. Nós sempre voltaremos. Nós somos os guerreiros de Zumbi e Dandara, nós somos a força do quilombo. Nós somos o tom da Terra”, disse a liderança quilombola durante o congresso da CSP-Conlutas.

Protagonista da própria história, Fátima Barros sempre pedia licença aos ancestrais para proclamar sua fala sobre os povos cerradeiros. Libertar a terra e honrar o território como espaços de resistência e existência, movia o percurso de seus enfrentamentos e da busca para que a verdadeira história fosse conhecida, sem se esquecer que o Brasil é fruto de uma diáspora africana forçada e de genocidio contra os povos originários. 

Inquieta e insubmissa às lesões de direitos, realizou formação política para a juventude e para as mulheres do quilombo, e de outros Estados. Propagou o seu legado pelo trabalho coletivo e mostrou ao mesmo tempo a fúria contra as injustiças e investidas dos poderosos, quanto o acolhimento, empatia e alegria para com os seus.

Letícia Queiroz, jornalista, escritora e sobrinha de Fátima, lembra o carinho, a inspiração e perseverança que a liderança emanava por onde passava. “A tia Fátima foi, pra mim, um espelho. Quem eu admirava com todas as minhas forças. Me fazia ter amor pela leitura, pela militância, pelos estudos. Me ajudou em todos os processos até me ver formada pela Universidade Federal do Tocantins. Fátima me fez ter orgulho da mulher preta que sou. Sempre fazia questão de usar turbantes e ensinar sobre o motivo e o significado. A vida dela era lutar por quem não tinha voz. Nunca conheci alguém tão forte quanto ela”.

“Fátima representa a mulher negra do Cerrado, a mulher quilombola do Cerrado brasileiro”, destaca Valéria Pereira, da Comissão Pastoral da Terra, da articulação CPT’s do Cerrado e integrante da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. “Lembrar do Cerrado, é lembrar de Fátima, é lembrar das árvores fortes, resistentes e resilientes do Cerrado, que com raízes profundas passa por períodos de intempéries, mas que se regenera, se reconstrói, e passa por novas estações muito mais forte e mais resistente”, diz ao lembrar da personalidade forte, inconfundível e meiga da liderança. 

Mulheres do Quilombo da Ilha de São Vicente – Tocantins. Foto: Lhairton Kelvin Araujo Costa.

“Quando eu chego aqui e digo “eu sou uma mulher negra e quilombola”, muita gente até acha bonito, mas quando eu digo “a ilha de são vicente é meu território e eu quero a minha terra, porque ela é minha por direito, é a minha herança”, aí eu passo a incomodar. Aí sim eu sou cassada por pistoleiros, me mandam recado que vão cortar a minha cabeça, porque foi isso que eu escutei”, relatou Fátima durante o ato de denúncia por direitos e contra a violência no campo, realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos, em 2017. 

Pelo direito ao Cerrado

Conhecida por não ter medo de falar a verdade e estar à frente da luta, Fátima é uma guardiã do Cerrado, uma educadora que soube a força do povo e do quanto eles ao tocar a terra a fazia florescer. 

O ecoar de sua voz, surgia como reverência a quem veio antes, o posicionamento firme, consciente de todas as violências, marca a continuidade da esperança e do acreditar que com luta os povos podem vencer e retomar o seu espaço. “Tia Fátima deixou sementes que deverão ser regadas, cultivadas e colhidas. Tinha muitos planos pela frente e jamais desistiu das lutas, apesar de todas as dificuldades que enfrentava e as ameaças que sofria”, diz Letícia diante da saudade que a liderança deixa a toda a comunidade.

Presente nas discussões, puxando o debate, mobilizando as articulações em defesa dos povos, a liderança também foi uma das que se dirigiram até o Congresso Nacional em 2018, junto à Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, para entregar as 570 mil assinaturas da petição pública e exigir o respeito ao Cerrado e à Caatinga. Uma batalha que ainda está em andamento, em prol da aprovação da PEC 504/2010 para que esses biomas se tornem Patrimônios Nacionais. 

Emilia Costa, do quilombo Santo Antônio do Costa e da articulação entre Comunidades Quilombolas do Maranhão (MOQUIBOM), também participa da campanha, não esquece desse momento e do quanto Fátima Barros sempre a inspirou e a ensinou enquanto jovem liderança. “Mesmo do outro lado, ela ainda vai nos ensinar bastante”, afirma sobre a grandeza da liderança quilombola e da permanência de seu legado.

Em Brasília, no Congresso Nacional, para tornar o Cerrado e a Caatinga Patrimônio Nacional. Foto:Thomas Bauer/CPT.

“A luta quilombola, ela se dá no terreno jurídico, mas ela também se dá no terreno espiritual, no terreno intelectual e no terreno ético. Porque lutar pelo o que é nosso por direito também é ética. A gente faz a luta pelo direito de viver na terra, permanecer na terra, criar nossos filhos na terra e também para poder morrer na terra e ser enterrado nessa terra”, diz a Fátima na Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

Maria Aparecida, conheceu Fátima na Ilha de São Vicente, durante uma formação da juventude, e recorda a força de sua fala e da motivação que ela passava a respeito da luta, de se conhecer a importância do Cerrado e seus povos. Junto à liderança, também organizaram a marcha de mulheres negras na região de Tocantins e diversos debates nas universidades a respeito das cotas para a população quilombola e negra, além de palestras sobre a questão étnico-racial.

A coordenadora ainda ressalta a arte que a liderança estava desenvolvendo. Durante a pandemia, Fátima, que também era artesã, criou a linha de camisetas chamada “Serafinas”, as peças eram feitas com sementes, detalhes de mulheres negras e da cultura afro-brasileira. 

O artesanato era uma maneira de observar a beleza e a diversidade do Cerrado, usar o bem desse lugar para manter a comunidade e o autocuidado entre as mulheres. Arte que também fazia parte do grupo de mulheres da Ilha, formado não só para o artesanato, mas para que as quilombolas conversassem sobre os impactos sociais em suas vidas, das violências, dos projetos, da importância de se organizar, dos sonhos, uma rede de formação e refúgio.

“Foi uma mestra em minha vida. Não dá para mensurar em palavras. Ela tentava mostrar para todas as mulheres a importância e o valor da história de cada uma, de conhecer a fundo suas raízes, quem são os seus, não se envergonhar de sua história. O que ela me deu ninguém pode tirar”, diz emocionada Helisana que entre várias memórias, conta sobre algo que ficou marcante. Enquanto os outros tios traziam bonecas como forma de presente, Fátima dava livros. “A lembrança que eu guardo pra vida é essa. Ela chegava pra gente com livros. Então, desde muito pequena mesmo, eu lembro da tia Fátima me dando livros”, descreve ressaltando a importância da leitura em sua vida e do quanto essa influência a levou a ser quem é hoje.

Fátima foi palestrante no Projeto Banana-Terra, Brasil e México, da Anistia Internacional em 2019. Foto: Divulgação.

Para honrar sua memória e que outras pessoas no futuro possam conhecer a potência que foi Fátima, Helisana conta que planejam fazer um memorial na comunidade e uma biblioteca na ilha com os mais de 10 mil livros que a liderança tinha. Além disso, relata o quanto foi gratificante ver a tia recebendo homenagens de todos os lugares e organizações nacionais, e recebendo uma rua com o nome dela na Universidade Federal do Tocantins – Campus de Porto Nacional.

“Fátima é presente! Fátima é semente! Permanece viva com a gente e vamos continuar o legado dela, da mulher forte que ela foi, da diferença que ela fez tanto para a comunidade quanto para o país”, finaliza.

“Eu sou a força daqueles que não tombaram. Quando o inimigo diz que nós perdemos, a luta está apenas começando. Não nos calaremos!”

Fátima Barros, liderança quilombola da comunidade Ilha de São Vicente, Bico do Papagaio, Tocantins.

Viva Fátima Barros, viva Dona Dijé, Dona Raimunda, viva as mulheres do Cerrado que se tornaram sementes de luta em defesa da terra-território e de seus povos.

Foto em destaque: Lhairton Costa | Arte: Júlia Barbosa | Edição: Renato Silva.

Bastidores do FP

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