
Nós, os favelados, moramos numa área, que os primeiros colonos da América do Norte chamavam “city upon a Hill“, simplesmente por estar vazia uma, vez que sempre houve preferência por ocupar as áreas de planícies e esses acessos “militares” são mais difíceis, e menos confortáveis de ser escalados. Houve um tempo que essas áreas eram reservadas igreja católica, pois “nada podia estar a cima de deus”, lembrando a toda sociedade que igreja e estado eram e foram, uma coisa só.
Privilégio, no sentido que emprega Sandra Cavalcanti, não há, se houvesse e isso é subjetivo, citaria 02: as melhores vistas de uma cidade de bela topografia e com uma natureza sensacional, que somente os estrangeiros, que moram em planícies e destruíram a natureza a sua volta, são capazes de ver.
Aqui perto, por exemplo, tem a residência de Grandjean de Montignyi, estrangeiro que viu a beleza da natureza e construiu sua residência ali, enquanto que para a sociedade carioca da época, era coisa para selvagens morar próximo ao verde, e em sua obsessão por imitar a Europa, com sua ausência de verde e paixão pelo cinza do cimento, símbolo, dentro dessa mentalidade imitativa, de desenvolvimento.
Sou entusiasta, junto com outros, de uma instituição chamada Museu da Rocinha, seu conceito de operação é o valor das ações que os moradores realizavam antes do desenvolvimento” a lá Sandra Cavalcanti, valores antigos e que geravam o privilégio número 02 da minha lista: Sentido de comunidade (todo cuidado com esse termo, somos, somente na Rocinha, 100 mil moradores), uma vez que as mais modernas e caras (economicamente falando) práticas da moda atual, era o que já se fazia no início das favelas: sustentabilidade, redução do impacto ambiental, preservação da natureza, reaproveitamento das águas das chuvas, manejo inteligente da vegetação, esses são exatamente os conceitos que se quer operar o Museu da Rocinha. Não um retorno a um tempo idílico e impossível, mas uma volta necessária, para toda a humanidade, ao equilíbrio entre nós e a natureza.

Os maus exemplos dos ricos: desperdício, excesso, plásticos, são imitados na favela, onde entupir a si mesmo e os próprios filhos de açúcar (camuflado em refrigerantes e sucos industrializados, “caros”) é um sinal de status e diferenciação, para cima, na escala social. O lixo que é gerado pelos ricos e que “desaparece” na caixa mal cheirosa no final do corredor, é manuseado pelo funcionário mal pago do prédio de apartamentos, (alias pagar justos salários pelo trabalho, o brasileiro rico, estranhamente, não quer imitar o europeu).
Aqui na Rocinha e em outros lugares, criou-se, um necessário e funcional, projeto de recolha se lixo nas residências, mas este veio desacompanhado de envolvimento e conscientização junto a população atendida, o que gerou um maior volume de lixo, agora ancorado nos becos, à espera do seu igual “desaparecimento”.
Enquanto escrevo ouço tiros, em mais uma manhã sem creche e me vem duas imagens a cabeça: Racionais MCs e alguém na favela “num quarto de madeira lendo à luz de vela” e do escriba medieval, que só pôde produzir pois havia um soldado/guerreiro que o poupava da arte da guerra. Eu estou protegido pelos tijolos e a argamassa erguidos nos anos 80.
Ontem estive em Petrópolis, a estudo, e voltei disposto a falar mal do museu imperial e sua injusta distribuição de renda, mas deixo para outra hora, pois hoje acordei inspirado para falar de coisas positivas, mas o tiroteio lá fora me desconcentra.
E eu, assim como todos nós que moramos na favela, não sou escriba e muito menos guerreiro, nós, somos trabalhadores civis.
P.s: Nós que moramos nas favelas do Rio de Janeiro somos 2 milhões de pessoas, para um tempo em que palavras não significam nada e números menos ainda.
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