
Cerradeiras relatam a expansão da violência do agronegócio e da ameaça ao direito à vida das mulheres e dos povos.
“Abro a janela e olho aquele sol maravilhoso, aquelas árvores e falo: louvado seja Deus! Eu sou muito grata por ter o privilégio de ficar, de morar, de estar vivendo aqui, mesmo com todas as dificuldades”, diz Ginercina sobre a felicidade de viver no campo. “Acredito muito que a gente está em maior vantagem do que quem está lá na cidade. Com todas as dificuldades, ainda é melhor viver aqui no sítio do que estar lá na cidade”.
No centro do país, o Cerrado Goiano, é onde vive Ginercina de Oliveira, agente de saúde e Agricultura Familiar no assentamento do município de Santa Rita do Novo Destino, Goiás. Ela também faz parte da Associação de Mulheres Empreendedoras Rurais e Artesanais de Barro Alto e Santa Rita do Novo Destino (AMERA). Convivendo próximo a uma mineradora multinacional, a agricultora conta como realizam o plantio em meio ao desequilíbrio ambiental e do quanto a seca é uma realidade, mesmo vivendo acima do berço das águas.
“Nossos córregos não escorreram água, as minas praticamente estão secas, não têm brejo. Mas acaba que nós mulheres, somos as que mais ficamos na terra, porque os maridos sempre saem para trabalhar. É a mulher que sofre mais com a questão da água, pela questão da dificuldade de colocar água para os animais, molhar as plantas, acaba que a gente trabalha mais. Então, o sofrimento dobrou, antes a gente tinha água com abundância, tudo era mais fácil, hoje tem que pensar na economia dessa água. E a mulher acaba se sobrecarregando muito, porque ela tem que pensar em como resolver tudo isso”, relata ao trazer sua experiência com a terra.
Assustada com a perda de mais uma roça, a agricultora diz que são visíveis os efeitos da devastação ambiental e hídrica com a chegada da mineradora, que prega um ideal de progresso para a região. “O clima tá muito difícil. Muita praga, muita formiga, às vezes chove de manhã e ao meio dia você vai ver a planta está queimando. Muito sol, aí de repente vem chuva muito forte e acaba estragando o plantio”.
No início era apenas uma solução para a questão financeira, hoje é de sobrevivência da terra e das pessoas. O projeto junto ao Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) possibilitou aprendizado a respeito da agrofloresta, uma metodologia baseada na economia de água, na cobertura do solo por folhas de bambu e de capim, e no consórcio de plantas. Assim, junto com outras árvores também se planta hortelã, babosa, manjericão, plantas medicinais como hortelã, mastruz, assa peixes, sangra d’água. Um encontro que possibilita a troca de nutrientes pelo solo e entre as plantas.
Isso ajudou o grupo de mulheres, que já trabalhavam com remédios naturais, a aproveitar o conhecimento do Cerrado para produzir xarope e sabonete, por exemplo. Atualmente as vendas são realizadas pelo WhatsApp, na cidade de Barro Alto. “A gente está lutando hoje é para sobreviver”, por isso, “ser agricultora familiar é lutar todos os dias com toda fé para que nossas sementes semeadas possam dar frutos bons e que esses frutos cheguem o melhor possível em nossas mesas, e também na daqueles que comprarem”, ressalta.
“Para o Cerrado não importa o tamanho da dificuldade, porque depois de uma queimada, ele ressurge das cinzas mais forte e mais vivo do que nunca! Tenho fé que nossos brejos e nossas águas ainda vão voltar”.
Ginercina de Oliveira
Nesse enfrentamento, a agricultura familiar é uma das atividades que mantém o Cerrado de pé e promove a sustentabilidade a partir da agroecologia, uma relação de respeito e conservação com a terra e aos animais. Dados do Censo Agropecuário de 2017-2018, mostra que 77% dos mais de 5 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil foram caracterizados como pertencentes à agricultura familiar. E são responsáveis pela circulação de alimento pelo país por produzir cerca de 70% do feijão nacional, 34% do arroz, 87% da mandioca, 60% da produção de leite e 59% do rebanho suíno, 50% das aves e 30% dos bovinos.
Saúde comprometida pelos agrotóxicos
Um caso curioso ocorre de tempos em tempos nas comunidades que dependem do Rio Correntina e do Rio Arrojado, Oeste baiano, Cerrado baiano. Todo mês de outubro e novembro, maio e junho, a população, seja adulto ou criança, sofre de diarreia a ponto de ir parar no hospital.
A coincidência é que isso sucede no mesmo período em que os grandes fazendeiros estão plantando soja ali próximo. “O diagnóstico é pela experiência, pela prática da gente, e temos certeza que é por causa dos agrotóxicos”, afirma a Adalgisa Maria, mais conhecida como Dona Nena, agente comunitária de saúde e ribeirinha que vive na comunidade de São Manoel, nas margens do Rio Arrojado, Bahia.
Ainda subnotificado, de acordo com o Ministério da Saúde, entre os anos de 2007 e 2015, houve um total acumulado de mais de 84 mil casos registrados de intoxicações por agrotóxicos no Brasil, só as mulheres eram 44,3% dos casos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 2% dos casos de contaminação por agrotóxicos são notificados.
“É um tempo de muita agressividade”, diz preocupada. O agronegócio não parou com a pandemia e não respeita os territórios, segundo Dona Nena os grileiros continuam ameaçando, tanto que recentemente derrubaram dois fechos de pasto que tinham mais de 100 anos. A ganância de tal modelo de produção possibilita que o governo da Bahia libere outorgas de água e de desmatamento, favorecendo o agronegócio que, como pontua a ribeirinha, não se importam com o povo e, muito menos, traz benefícios à comunidade. Acabam com as águas dos rios, não investem na terra, e ainda importam os recursos naturais da região junto com as carnes e a soja.
“A gente caminha seis horas dentro de uma fazenda e ainda não chega no final da fazenda. Tudo desmatado e precisa desmatar mais? Muitas fazendas são abandonadas e os fazendeiros estão entrando para dentro do mato, e o desmatamento vai ficando para trás. Todo ano a gente planta naquele mesmo lugar, só faz arar a terra e colocar esterco, porque eles [agronegócio] não fazem do mesmo jeito?”, questiona.
Violência à terra e aos corpos das mulheres
A agente de saúde também ressalta o quanto essa violência impacta no modo de vida das mulheres que colhem frutos para o alimento, o Capim Dourado para fazer seus artesanatos, o Buriti, o Pequi, o Cascudo para fazer sabão. “É um embate pela terra e pela água, porque se não tem água a pessoa fica sem terra. É da água que tiram o seu ganha pão, colocam comida na mesa de brasileiros. Tem um ditado que diz: se o roçado não planta, a cidade não janta”, lembra.
“Foi as mulheres que realmente inventaram a agricultura. São as mulheres que conhecem, sabem e valorizam a agricultura e, principalmente, o Cerrado. Por isso que a gente luta e a gente grita que o Cerrado é do povo”, diz Dona Nena.
A ribeirinha ainda não deixa de mencionar o quanto a violência continua tentando parar a vida das mulheres. Jovercina e Anália são mulheres, trabalhadoras camponesas e mães, que tiveram suas vidas tiradas pelo feminicídio, ambas foram mortas pelos companheiros. Mártires que inspiram, dão força e foco para Dona Nena continuar lutando. Ela também cita outras como Marielle Franco, irmã Dorothy Stang e Margarida Alves. “É pelo sangue delas, pela voz delas, pelas lutas delas que a gente continua lutando mesmo agora nesse tempo de pandemia”.
Conforme o relatorio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a violência contra as mulheres tem sido uma constante no campo brasileiro, só em 2019, 102 camponesas, indígenas, quilombolas e lideranças foram vitimadas por assassinato, ameaça de morte, prisão, intimidação entre outras formas de violência. O relatório de Conflitos no Campo Brasil de 2018, revela que entre os anos de 2009 e 2018, cerca de 1.409 mulheres sofreram algum tipo de violência, porém faltam dados sobre expulsões e despejos. A mesma pesquisa demonstra que apenas no ano de 2018 foram computados 482 casos de mulheres do campo que sofreram algum tipo de violência, 409 receberam ameaças de morte, o maior índice desde 2008.
A tecnologia da terra, de animar a terra, está nas mãos das mulheres, das camponesas agricultoras, e isso é recorrente na fala da ribeirinha e das mulheres que lutam pela vida e pelo bioma vivo. “O Cerrado é o nosso criador, nosso pai. Ele nos ensina práticas de perseverança, de cuidado, de zelo. Ensina, principalmente, que a gente pode usar dele, pode viver o tempo dele, pode usar de tudo, de medicina, de alimentação e ainda tem, se a gente tiver o cuidado”, diz com a palavra carregada de significados que perpassam anos de experiência e certeza de que o caminho é esse.
“Se acabar o Cerrado, acaba também o Brasil e o mundo. Porque o Cerrado é um dos biomas que sustenta o mundo. É onde está o potencial de água doce do mundo. Junte-se a nós na defesa desse bioma”.
Convida Dona Nena, guardiã do Cerrado Baiano.
Arte em Destaque: Júlia Barbosa | Edição: Renato Silva.