O Norte é a região que mais recebe imigrantes venezuelanos com 120 mil deles com registro ativo

Até 2021, 1,3 milhão de imigrantes residiam no Brasil, tendo a Venezuela, Haiti, Bolívia, Colômbia e Estados Unidos como os países responsáveis pelos maiores fluxos imigratórios em dez anos, de 2011 a 2020, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Entre eles está Marvis Calonez, de 40 anos, fundadora da União da Saúde Latino Americana (USLA).

Em 2018, Marvis juntamente com seu marido e dois primos saíram da cidade de Puerto Ordaz em busca de melhores condições de vida em Manaus, capital do Amazonas. Mas o que ela encontrou foram as dificuldades para se estabelecer, o preconceito, as burocracias criadas pelo estado e tudo isso, em 2020, somado à pandemia da covid-19. 

A imigração faz parte da história do país, pois com o fim do tráfico negreiro interatlântico em 1850 a mão de obra nas fazendas brasileiras se tornou mais cara para as elites. Foi então que o governo imperial passou a incentivar a imigração de italianos, alemães, japoneses e poloneses que estavam em situação de vulnerabilidade econômica e que poderiam trabalhar nas fazendas. Esse incentivo também ocorreu na tentativa de embranquecer a “raça brasileira”, composta principalmente de pessoas negras e indígenas, como afirma o artigo “Teorias raciais no Brasil: um pouco de história e historiografia” do historiador Diego Uchoa Amorim. 

“Isso fica mais claro se atentarmos para o caráter discriminatório de algumas leis e decretos dos primeiros anos da República. A mais explícita, como aponta Amilcar Pereira, é o Decreto nº 528, de 28/06/1890, que proibia a imigração de “indígenas da Ásia ou da África”14, autorizando, apenas, os europeus”, ressalta o artigo publicado na Revista Cantareira da Universidade Federal Fluminense. 

Já na história recente, assim como Marvis e sua família, mais de 609 mil venezuelanos entraram no Brasil e 345 mil saíram entre 2017 e 2020, segundo a Polícia Federal (PF) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). A situação revela como o país, que é a quinta nação que mais recebe venezuelanos, não é somente o destino final destes imigrantes, mas também serve como área de trânsito. 

A região Norte é a que mais concentra imigrantes venezuelanos com 120 mil registros ativos, bem atrás está o Sudeste com pouco mais de 18 mil venezuelanos. A informação é do Sistema Nacional Migratório (Sismigra) publicado na reportagem “Faces da imigração: a infância de indígenas venezuelanos no Brasil” do Nexo Jornal. 

De acordo com o relatório “Integração de refugiados e migrantes venezuelanos no Brasil”, divulgado em maio de 2021 pelo Banco Mundial, em parceria com a Acnur, Roraima e Amazonas são os estados que mais recebem venezuelanos, com 50% e 19%, respectivamente. A agência também afirma que mais de 5 mil refugiados e imigrantes indígenas venezuelanos foram registrados no Brasil, sendo 67% deles do povo Warao em abril de 2021

Formada em Medicina pela Universidad Bolivariana de Venezuela e especialista em Gerência Hospitalar e Saúde Pública, Marvis chegou ao país com o sonho de exercer a profissão. Ela e o marido se viram obrigados a vender água no sinal de trânsito, no Centro de Manaus, para sobreviver enquanto distribuíam currículos pelo bairro. 

Marvis Calonez em Boa Vista, Roraima. (Foto: Arquivo pessoal)

“Eu vendia água o dia inteiro no sol quente e a noite ia trabalhar no bar, mas lá eles não me respeitavam. Ouvia muita coisa ruim, então desisti de trabalhar no bar”, contou Marvis ao Favela em Pauta, relembrando as discriminações que sofria.

Quem também lidou com a xenofobia no Brasil, foi Isabel Lopez*. Em 2019, a administradora cruzou a pé a fronteira de Santa Helena, na Venezuela, até a cidade de Pacaraima, localizada no estado de Roraima e considerada a principal porta de entrada dos imigrantes no país. Atualmente os venezuelanos correspondem a 12% da população do estado, aponta a Acnur. 

Trabalhando em território brasileiro como empregada doméstica e vendendo bolo nas ruas de Boa Vista, Isabel* conta que ao chegar na cidade foi em busca de emprego no comércio local, mas os comerciantes a rejeitavam quando percebiam a sua nacionalidade. 

“Uma vez, no Uber, o motorista começou a dizer que nós, venezuelanos, somos ‘pilantras’ e queremos roubar o emprego dos brasileiros, mas isso é mentira. Eu só queria terminar a corrida que eu estava pagando. Depois eu denunciei o motorista no aplicativo”, disse Isabel, que não é a única a sofrer com a xenofobia e a violência no Brasil. 

Em 2018, um grupo de brasileiros destruiu o acampamento de imigrantes em Pacaraima, enquanto em fevereiro de 2022 o congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi assassinado após cobrar o seu pagamento no quiosque em que trabalhava no Rio de Janeiro. Moïse foi espancado e amarrado em uma escada por um grupo de cinco homens. 

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) afirma que, entre 2015 e 2019, o Brasil cadastrou cerca de 178 mil solicitações de refúgio e residência temporária para venezuelanos. A pessoa que imigra é identificada no Brasil como imigrante ou refugiada. O imigrante é aquele que sai do seu país de origem na procura por melhores condições de vida. Já o refugiado é alguém que também fez esse deslocamento, mas por razões de guerras ou perseguições devido à raça e religião, por exemplo.

A imigração de venezuelanos como Marvis e Isabel*, é uma consequência da crise política, econômica e social no país onde, desde 2013, a população tem sido gravemente afetada pela desvalorização do petróleo, principal fonte de riqueza local. Além da disputa entre o presidente Nicolás Maduro e a oposição política, que tem denunciado abusos de poder, uso de violência para combater protestos e perseguição de opositores.  

A partir de 2019, a crise ganhou um novo capítulo. Em 2018, Maduro se reelegeu com 68% dos votos e no ano seguinte a presidência foi colocada novamente em disputa. O ex-deputado Juan Guaidó se declarou presidente interino da Venezuela e foi reconhecido por países como Estados Unidos, França e Brasil. As novas eleições no país estão previstas para 2024, mas Guaidó e os demais opositores pedem que elas ocorram antes.

Mercado de trabalho

Segundo um estudo da Acnur, em 2020, adultos venezuelanos tinham 64% menos chances de trabalhar em empregos formais. 

“Enquanto 72% dos brasileiros relatam trabalhar em uma ocupação onde a exigência de educação é inferior ao nível de escolaridade mais alto adquirido, 85% dos venezuelanos afirmam fazê- lo. A incidência de rebaixamento profissional no trabalho é maior para venezuelanos com ensino médio e superior (96% e 91%, respectivamente) do que para brasileiros com ensino médio e superior (89% e 62%, respectivamente)”, diz um trecho do relatório “Integração de refugiados e imigrantes venezuelanos no Brasil” da Acnur. 

Com o objetivo de deixar as vendas feitas nas ruas, Marvis buscou o apoio da Cáritas Brasileira, membro da confederação de organizações humanitárias da Igreja Católica, e conseguiu comprar um secador de cabelo e outros aparelhos para trabalhar em um salão de beleza.

“Logo percebi que eu poderia conquistar mais clientes atendendo em domicílio, então saí do salão de beleza e de sábado a domingo atendia as minhas clientes e nos outros dias estudava. Na mesma época meu marido conseguiu emprego num bar e meus primos foram ajudantes de pedreiro”, disse ela.

Ela conciliava o trabalho com os estudos para a prova de revalidação de diploma, o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida). Realizado anualmente em duas fases, o exame permite que profissionais como ela, que se graduaram em instituições estrangeiras, caso aprovados nos testes, revalidem o diploma em uma instituição nacional e atuem em território brasileiro. Marvis também buscou estágios voluntários na área da saúde — o que lhe foi negado pela falta do Revalida e do registro no Conselho Regional de Medicina (CRM). 

“Em 2019, ainda sem oportunidades como médica, eu criei um grupo no Whatsapp com outros venezuelanos. O intuito era a gente se organizar na cidade e combinar um encontro presencial, mas com o tempo o grupo que era de 20 profissionais da saúde passou a ter mais de 400 imigrantes de diferentes áreas e cidades do Norte. Lotamos um auditório em Manaus e foi ali que percebi a necessidade de criar uma associação”, afirmou. 

A médica passou a organizar reuniões, recolher assinaturas e criar o estatuto da associação que tinha como principal objetivo orientar imigrantes na revalidação do seu diploma. Mas com dificuldades para encontrar apoio financeiro na legalização da organização, ela optou por deixar a iniciativa de lado. 

Impactos da pandemia da covid-19 

Em 2020, Marvis, Isabel* e o mundo foram pegos de surpresa. A pandemia do coronavírus atingiu o Brasil em março daquele ano, afetando principalmente as populações em situação de vulnerabilidade e colocando uma lupa nas desigualdades já existentes na sociedade. O número de infectados pelo vírus já ultrapassa os 400 milhões no globo e 28 milhões de casos no Brasil, sendo mais de 570 mil deles no Amazonas e 154 mil em Roraima. 

Isabel*, que é trabalhadora doméstica, é mãe solo de três crianças. Após seis meses no Brasil, ela conseguiu trazer o mais velho deles, de 14 anos, para morar com ela em Boa Vista. Enquanto Isabel* se dividia entre as casas e as vendas de bolo, o filho estudava em uma escola pública próxima à casa da família. 

“Menos venezuelanos estão matriculados na escola em comparação com seus pares brasileiros. No geral, a análise sugere que os venezuelanos têm 53% menos probabilidade de ir à escola do que os brasileiros. O rebaixamento para classes inferiores e a escassez de professores que falam espanhol são os principais obstáculos para os venezuelanos terem acesso à educação”, complementa documento da Acnur.

Mesmo com a recomendação de isolamento social, Isabel* precisou trabalhar durante o pico da pandemia em 2020. As ruas de Boa Vista ficaram vazias e as suas vendas caíram, mas diversas casas continuaram solicitando o trabalho doméstico.

“Mesmo com muito medo de me contaminar, eu tive que continuar com o trabalho. Eu precisava do dinheiro. Algumas famílias não queriam que eu fosse lá por causa da Covid, mas outras passaram a me procurar  justamente para ter a casa mais limpa”, disse ela.

Por volta de junho do mesmo ano, ela e alguns membros da casa em que estava trabalhando foram contaminados  pelo coronavírus. “Graças a Deus meu filho nunca pegou Covid. A família me ajudou bastante nessa época também, pude ficar em casa me cuidando e eles enviavam comida e qualquer outra coisa que precisasse para gente”.

A categoria das trabalhadoras domésticas é uma das mais vulneráveis à pandemia do coronavírus. Um exemplo disso é a primeira vítima pela doença no Rio de Janeiro. Dia 19 de março de 2020, o governo do Estado confirmou a morte de uma empregada doméstica, de 63 anos, que teve contato com a patroa que estava na Itália e estava infectada. 

O Brasil possui 6,2 milhões de domésticas, sendo 92% dos profissionais mulheres e 68% delas negras, aponta a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Criação da USLA

Quando a pandemia começou, Mavis estava considerando migrar para o Uruguai quando as fronteiras entre o país e o Brasil foram fechadas. Com o cenário pandêmico e aumento dos casos de covid-19, Boa Vista precisou abrir um hospital de campanha e um processo seletivo para profissionais da saúde, onde Marvis viu a oportunidade de realizar o sonho de trabalhar como médica no país. 

Marvis Calonez durante ação social no município de Presidente Figueiredo, Amazonas. (Foto: Arquivo pessoal)

“Uma amiga me avisou do edital e disse que não era preciso ter CRM. Fui para Roraima tentar a sorte apenas com o dinheiro da passagem, dormi na rua e enfrentei algumas dificuldades até finalmente conseguir a minha vaga. Após um período de capacitação e trabalho, o Sindicato dos Médicos e o Conselho de Medicina do estado passaram a protestar contra a contratação até a demissão de todos e eu precisei voltar para Manaus”.

Com o surgimento da Cepa P.1 e a crise de oxigênio no Amazonas em 2021, ela lembra que assistia aos jornais locais e lamentava por não estar trabalhando. “Tinha muita gente morrendo e eu e outros médicos venezuelanos sem poder fazer nada. Resolvi chamar alguns amigos e sugeri que fossemos até o Hospital 28 de Agosto nos colocar à disposição da unidade”.

Foi então que Marvis decidiu retornar com o grupo de Whatsapp e organizar novas reuniões. Um segundo estatuto foi elaborado e a União da Saúde Latino Americana (USLA) foi criada e legalizada com recursos próprios. “Além das orientações para o Revalida, hoje nós articulamos entre muitas coisas apoio psicológico para os imigrantes e acompanhamento jurídico em casos de abusos no trabalho e violência sexual. Temos imigrantes cadastrados na USLA tanto daqui de Manaus quanto em municípios da região metropolitana e até de outros estados”.

Senegaleses no Recife 

Entre 2014 e 2016, muitos senegaleses vieram para o Brasil, no período da Copa do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos do Rio, em busca de emprego, é o que diz Amadou Tore, presidente da Associação de Senegaleses do Nordeste e do Norte no país e que tem sede no Recife. 

Amadou Tore em sua casa no Recife, Pernambuco. (Foto: Arquivo pessoal)

Criada em 2015, a organização tem o intuito de apoiar os recém-chegados no Brasil trabalhando na orientação de acesso a documentos e articulações de trabalho e moradia. Naquele mesmo ano, mais de 2.400 migrantes entraram em Pernambuco, de acordo com dados publicados pelo site Marco Zero. Amadou afirma que a comunidade senegalesa do estado sobrevive do comércio informal comprando roupas, acessórios e objetos de decoração típicos e revendendo na cidade. 

A Associação possui parcerias com organizações como a Ordem dos Advogados de Pernambuco (OAB-PB) e a Defensoria Pública do Estado. Assim como na USLA, um grupo de WhatsApp é mantido por Amadou para que os associados das duas regiões tenham contato. “Nós gostamos de viver em comunidade e fazemos o possível para ajudar os senegaleses que estão chegando. Como a maioria é islâmica, aqui no Recife nós também nos encontramos na Mesquita”.

Há mais de 20 anos no Brasil, Amadou deixou a sua cidade natal, Dacar, capital do Senegal, em busca de uma oportunidade de emprego no Rio de Janeiro e do visto para os Estados Unidos. 

Segundo ele, o Brasil serve como rota para africanos que desejam migrar para os Estados Unidos, pois seria mais fácil adquirir o visto estando em território brasileiro. Com o documento negado, os planos mudaram e Amadou seguiu para Salvador, onde fez um curso de gastronomia pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Senai. 

“Meu irmão já morava no Brasil e dizia que tinha muito emprego e que o povo era acolhedor, mas chegando aqui as coisas não aconteceram como eu esperava. Fui para a Bahia e fiquei lá por quase 10 anos. Comecei a trabalhar com o comércio, me casei e tive dois filhos”, contou ele ao Favela em Pauta.

Com a pandemia da Covid-19, os senegaleses que apresentaram sintomas do vírus foram encaminhados para o convênio de saúde que é parceiro da Associação. Já em relação ao trabalho, o apoio de organizações não-governamentais e o suporte entre os membros da comunidade foram fundamentais, diz Amadou. “ No início nós recebemos cestas básicas de ONGS e dividimos entre as famílias da comunidade, quem tinha alguma comorbidade e não podia sair a gente levava o que fosse preciso na casa dela. Foi muito difícil porque a gente precisa viver aqui e ajudar a nossa família que ficou no Senegal, mas agora as coisas estão melhorando.”. 

*O nome da entrevistada foi trocado para preservar sua identidade.

**Edição: Renato Silva

Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América
Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios.
O conteúdo aqui publicado é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete
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