Dados do Instituto de Segurança Pública de 2019 e 2020 reforçam o quanto o isolamento aumentou o risco para vítimas de violência doméstica na Baixada Fluminense.

Por um momento, permita-se imaginar uma situação: são 22h, dia 13 de março de 2020, no centro do Rio. A aula na faculdade terminou, são 15 minutos andando até a estação na Central (tomara que a rua esteja cheia a essa hora), mais alguns minutos esperando o trem sair rumo a Caxias (se tiver lugar pra sentar é bom, mas tomara que não esteja vazio demais), uma hora depois e é só esperar o ônibus (nem ligo se precisar ir em pé) e, se der tudo certo, antes de meia noite chego em casa. O barulho de passos atrás de mim quebrou o raciocínio, é um cara – será que tá me seguindo? Meu Deus, se acontecer algo, que seja só mais um assalto. Ufa! Nada além de um vizinho. Enfim, cheguei em casa! “Que roupa é essa?” É a primeira frase que escuto assim que abro a porta. “Vai dizer que tava na faculdade? Plena sexta e você sai assim…” Uma indagação e, antes mesmo que pudesse falar, tropeço com o primeiro soco, mais uma agressão. Segunda-feira, 16 de março, pandemia, isolamento, home-office, aula online, agora é tudo em casa.

Esse é um cenário imaginado, mas que com uma ou outra alteração, pode ilustrar a realidade de muitas mulheres: já que em todo o estado do Rio de Janeiro, 59,3% das vítimas de violência doméstica e familiar sofreram crimes dentro de suas residências, de acordo com dados de 2019 do Monitor da Violência Doméstica contra Mulher no Período de Isolamento Social, organizado pelo Instituto de Segurança Pública – ISP do estado.

No mesmo ano, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio, obtidos via Lei de Acesso à Informação com exclusividade pelo Favela em Pauta, apenas na Baixada Fluminense foram registrados por dia mais de 60 crimes contra mulher, totalizando mais de 22 mil registros de crimes no ano, que vão desde ameaças e lesões até feminicídios. Desse total de crimes, 53% são cometidos por companheiros ou ex-companheiros das vítimas, dados que revelam a urgência em tratar desse tema durante o período da pandemia.

Nesse sentido, já no período de isolamento em 2020 – de 13 de março a 31 de dezembro -, o monitoramento realizado pelo ISP aponta localidades da Baixada Fluminense entre as áreas com maiores quantidades de registros de crimes contra mulher em todo o estado.

  • A 58ª Delegacia de Polícia de Nova Iguaçu aparece como a que registrou mais crimes;
  • Se tratando de feminicídios, a 54ª DP de Belford Roxo aparece no topo da lista, com 5 casos;
  • A 59ª DP de Duque de Caxias foi a segunda delegacia que mais registrou estupros no período. 

Luciene Medeiros, doutora em Serviço Social e participante do Fórum Municipal dos Direitos Humanos da Mulher de Duque de Caxias, ressalta que para analisar a situação das mulheres da Baixada Fluminense durante o período de isolamento é importante levar em consideração o perfil socioeconômico da população local, que de modo geral lida com infraestrutura urbana precária e vive nos limites da pobreza em muitos casos. 

“É uma população que tem, na sua grande maioria, mulheres negras, com trabalho precarizado. Isso significa dizer que é uma população que tem dificuldade com acesso a internet, por exemplo. E a gente sabe que internet na Baixada Fluminense é um privilégio para um segmento social e não para toda população, né? Nesse momento de pandemia, o acesso aos serviços especializados de atendimento à mulher, na sua grande maioria, estão em atendimento remoto e isso faz com que essa mulher tenha mais dificuldade de acessar esses serviços”, pontua a doutora, mostrando um cenário local que tenciona um problema que afeta a população feminina de modo geral.

O feminicídio escancara uma Baixada ainda mais cruel para a mulher

O feminicídio, ou assassinato de mulheres devido a sua condição de gênero, quando o crime é motivado pelo menosprezo e discriminação ao fato da vítima ser mulher, é outro fator que aponta a Baixada Fluminense como território ainda mais sensível. O Boletim Feminicídios e as Milícias na Baixada Fluminense, produzido pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, aponta que 34% do total de feminicídios registrados em 2020 em todo o estado foram cometidos na Baixada Fluminense. 

A Baixada faz parte da região Metropolitana do estado e compreende apenas 13 municípios, num estado composto por 92 cidades. Nela, vivem 23% da população do Rio de Janeiro de acordo com o Painel Regional do Sebrae de 2016. Para Giselle Florentino, economista e coordenadora da IDMJR, os números incompatíveis entre representatividade populacional e de registro de crimes contra mulheres estão relacionados ao domínio das milícias no território. 

“Uma coisa que a gente percebeu quando tava construindo esses dados é que na (região) Metropolitana do Rio de Janeiro houve uma diminuição tendencialmente ao longo dos anos nos casos de feminicídio. Mas essa tendência de diminuição não aconteceu na Baixada Fluminense, muito pelo contrário, a Baixada teve um aumento nos casos de feminicídio, isso também reforça como está acontecendo um estado de violência contra mulher principalmente em áreas dominadas pela milícia. E hoje a Baixada Fluminense é também um reduto da milícia”, pontua a coordenadora da IDMJR.

Sobre estas organizações, Florentino lembra que a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial promove um debate que não compreende as milícias como um poder paralelo ao Estado, mas sim como uma estrutura dele. “Se a gente for pegar quem são as grandes lideranças das milícias, a gente percebe que são agentes ou ex-agentes de segurança do Estado. Então a milícia, quando chega no território, também chega com um véu de legalidade institucional do Estado, como um projeto político de fato para esse território. Inclusive de monetarização privatização e milicianização de políticas sociais, tô falando do Minha Casa Minha Vida, da TV ilegal, da água, do gás, transporte alternativo, que teoricamente são obrigações de políticas públicas”.

Consequentemente, para Giselle, não é possível dissociar o papel da milícia no funcionamento das políticas de segurança pública do Estado, também na gestão e organização de políticas sociais para territórios predominantemente pretos e pobres, bem como quando há casos de violência contra a mulher. 

“Quando o agressor dessa mulher é um agente de segurança do Estado, ou ex-agente, ou miliciano, e ela tenta realizar o registro dessa violação é muito mais difícil. Porque as mulheres que tentam ir à delegacia registrar as violações, elas não contam de maneira nenhuma com apoio nem familiares e nem de vizinhos. Essas pessoas entendem esses agressores, companheiros ou ex-companheiros, como autoridades locais do território. Eles vêm com véu de instituição e de poder, de fato. É como se fosse denunciar o traficante da área, só que aí não é um traficante que domina aquela área, eles trazem em si esse poder do estado e as retaliações que são enormes”, conclui Giselle.  

Isolamento social reduz casos ou aumenta subnotificação?

Os registros de crimes em que as vítimas eram mulheres na Baixada, em 2020, sofreram queda média de 20% em comparação com números do ano de 2019. Em um cenário comum, essa informação poderia ser lida como avanço em termos de política pública de segurança. No entanto, o período de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus trouxe, junto das medidas de isolamento, restrições de prevenção ao contágio pela covid-19 também dentro das delegacias de polícia em diversas cidades (o que pode ser observado aqui e aqui).

Uma publicação, datada de junho de 2020, do Instituto de Segurança Pública – ISP, informa que desde o início da pandemia o volume de registros policiais foi afetado e que “os indicadores podem apresentar queda por causa do distanciamento social… e da diminuição dos registros das ocorrências, resultando em subnotificações”.

E em tempos em que negacionistas ocupam cargos importantes na política nacional e local, a doutora Luciene Medeiros lembra que a redução dos registros de crimes é um fenômeno mundial nesse momento e que é necessário ter atenção para que o poder público não se aproprie de uma queda estatística para outros interesses. “O poder público deve levar em consideração esse momento. Essa redução faz parte de um contexto, mas não reflete, de fato, a diminuição dos crimes cometidos contra mulheres”.

Na mesma linha, dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro mostram que crimes como ameaças e lesões corporais foram os que mais apresentaram essa queda. Enquanto outras tipificações apresentaram reduções menos significativas em comparação com o ano de 2019, a exemplo de estupros e homicídios dolosos. Veja na tabela abaixo:

Alternativas possíveis em proteção às mulheres na Baixada

Com um histórico preocupante quando o assunto é a proteção e garantia de direitos às mulheres e em especial em um território onde o poder público pouco age de fato para coibir crimes contra a população feminina. Além das questões levantadas a respeito da atuação de grupos paramilitares na política, torna-se importante debater a participação direta da sociedade civil como um todo na proteção das mulheres nesta região.

Pensando nestas questões, Medeiros aponta para uma participação da sociedade, desde a cobrança por políticas públicas, como melhores condições urbanas de iluminação, passando também pela criação de espaços solidários de debate sobre a questão de violência de gênero. “É muito importante que a gente aumente em quantidade e em qualidade os serviços que a gente chama de centros de referência. São serviços que atendem essas mulheres na perspectiva da orientação social, dando atendimento psicossocial, orientação jurídica para que ela possa compreender esse processo, não necessariamente de fazer a denúncia”, acrescenta.

Para Giselle Florentino a solução passa necessariamente por entender a responsabilidade do Estado nessa questão, como em diversas outras, através da aplicação de políticas que possam ir além de polícia e punição. “A gente vêm assistindo experiências fora do país. Os povos Mapuches, por exemplo, conseguem resolver seus conflitos sem acionar a polícia. Na história dos Quilombos também, os conflitos são resolvidos em diálogos, em conversas e a gente aqui realmente precisa de uma instituição para controlar, para executar e de alguma forma para dizer o que é certo e errado?”, questiona a coordenadora da IDMJR.

Onde procurar ajuda?

No âmbito territorial do estado do Rio de Janeiro se você ou alguma mulher próxima a você estiver em situação de risco, os serviços públicos de atendimento a mulher são: Serviço 190 da Polícia Militar (emergências), o Disque 180 do Governo Federal (denúncias e orientações), o Disque Denúncia no estado do Rio de Janeiro (2253-1177), a ouvidoria do Ministério Público do Rio de Janeiro (capital: 127; demais localidades: 2262-7015; WhatsApp: 99366-3100) e o atendimento ao cidadão da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (129).

Na Baixada Fluminense, há em diversos municípios espaços públicos especialmente voltados para o atendimento dedicado às mulheres:

  • BELFORD ROXO
    Superintendência de Políticas para Mulheres
    Av. Joaquim da Costa Lima, n° 2.490, Santa Amélia – Belford Roxo CEP: 26.165-385
    Tel.: 2761-6604 / 2761-6700

    Centro Especializado de Atendimento à Mulher de Belford Roxo – CEAMBEL
    Av. Joaquim da Costa Lima, n° 2.490, Santa Amélia – Belford Roxo. CEP: 26.165-385
    Tel.: 2761-6604 / 2761-6700 – Fax: 2761-5845
    Horário de Funcionamento: 2ª à 6ª feira, de 8h às 17h
  • DUQUE DE CAXIAS
    Departamento dos Direitos da Mulher

    Avenida Brigadeiro Lima e Silva, n° 1.618 – Bairro: 25 de Agosto – Duque de Caxias
    CEP: 25.071-182
    Telefone: (21) 2672-6667 / 2672-6650 ramal 222

    Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência
    Rua Manoel Vieira, S/N – Centenário – Duque de Caxias (Localizado dentro do Complexo de Assistência Social Juíza Olímpia Rosa Lemos).                 Telefone: (21) 2653-2546
    Horário de Funcionamento: de segunda a sexta, de 8h às 17h
  • GUAPIMIRIM
    Coordenadoria de Políticas para as Mulheres
    Avenida Íta, n° 117 – Centro – Guapimirim
    Telefone: (21) 99186-4622
  • MESQUITA
    Coordenadoria Municipal de Políticas para Mulheres (CMPM)
    Rua: Egídio n° 1459, Vila Emil – Mesquita
    Tel.: 2696-2491/2697-2750

    Centro Especializado de Atendimento a Mulher – CEAM – Mesquita
    Rua Egídio, n° 1459 – Vila Emil. CEP: 26.553-000
    Tel./fax: 3763-6093
    Horário de Atendimento: 2ª a 6ª feira de 9h às 17h
  • NILÓPOLIS
    Superintendência dos Direitos da Mulher de Nilópolis
    Rua Antônio João Mendonça, n° 65, Centro – Nilópolis.
    Tel.: 2691-6887/3684-1946

    Casa Municipal da Mulher Nilopolitana
    Rua Antônio João Mendonça, n° 65 – Centro – Nilópolis. CEP: 26.540-020
    Tel.: (21) 2691-6887
    Horário de Funcionamento: de 9h às 17h
  • NOVA IGUAÇU
    Coordenadoria de Políticas para Mulheres
    Rua Teresinha Pinto, 297, 2º andar, Centro – Nova Iguaçu. (prédio do CRAS)
    CEP: 26.215-210
    Tel.: 2698-2562/2668-6383

    Núcleo de Referência de Atendimento à Mulher
    Rua Teresinha Pinto, 297, 2° andar, Centro – Nova Iguaçu. (prédio do CRAS)
    CEP: 26.215-210
    Tel.: 2698-2562/2668-6383
    Horário de Atendimento: 2ª a 6ª feira das 9h às 17h

    Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) BAIXADA
    Rua Coronel Bernardino de Melo, s/n°, Bairro da Luz – Nova Iguaçu.  (Ref.: Rua do Fórum)
    CEP: 26262-070
    Tel.: (21) 3773-3287
    Atendimento: Segunda a sexta de 9h às 17h
  • PARACAMBI
    Coordenadoria Especial de Politicas para as Mulheres
    Endereço: Rua São Paulo, s/n°, Guarajuba – Paracambi (Ref.: Antigo Posto de Saúde). CEP: 26.600-000
    Tel.: 2683-2247

    Centro de Referência e Atendimento às Mulheres em Situação de Violência Clarice Lavras da Silva – CRAMP/SV
    Rua São Paulo, s/n°, Guarajuba – Paracambi. (Ref.: Antigo Posto de Saúde)
    CEP: 26.600-000
    Tel.: (21) 3693-4685
  • QUEIMADOS
    Coordenadoria Especial de Políticas para as Mulheres
    Rua Otília, n° 1495, Centro – Queimados CEP: 26.391-230
    Tel.: (21) 3699-3461/2665-8562

    Centro Especializado de Atendimento a Mulher de Queimados
    Estrada do Lazareto, n°85 – Centro – Queimados
    Tel.: (21) 2663-3222
  • SÃO JOÃO DE MERITI
    Superintendência de Direitos da Mulher
    Rua Defensor Público Zilmar Pinaud, s/n° Vila dos Teles CEP.: 25.555-690
    Tel.: 2662-7626/2651-1198

    Centro de Referência e Atendimento à Mulher Meritiense
    Rua Defensor Público Zilmar Pinaud, s/n°, Vila dos Teles CEP.: 25.555-690
    Tel.: 2662-7626/2651-1198
  • SEROPÉDICA
    Núcleo Integrado de Atendimento à Mulher – NIAM SEROPÉDICA
    Estrada Rio-São Paulo – Km 41, n° 26 – Campo Lindo – Seropédica
    Tel.: 3787-6042
    Horário de atendimento: 8h às 17h de segunda à sexta

*Os dados desta matéria foram obtidos a partir do Programa Jornalismo de Dados e Segurança Pública e Direitos Humanos, oferecido pelo Instituto Sou da Paz em Fevereiro e Março de 2021.

Texto: Renato Silva | Edição: Dandara Franco | Imagem em destaque: Dandara Franco

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