
“Cabe de novo perguntar: como é que a gente chegou a este estado de coisas, com abolição e tudo em cima?”, Lélia Gonzalez (1984)
Herdeira do primeiro Estado livre das américas, Quilombo dos Palmares (1597 – 1694), Lélia é leitura obrigatória para a luta antirracista no Brasil. Ao não só integrar as manifestações que reivindicavam humanidade ao povo negro, mas também pelo estudo da atuação da mulher negra ao longo da história. A intelectual não hesitava em pegar o microfone para expressar o grito preso em sua garganta, grito esse que não era só dela.
A conquista de leis fundamentais e a implementação de políticas públicas para a população negra é fruto de uma trajetória de resistência e insistência da não aceitação da opressão, algo que desponta já em África e nos navios negreiros. Ciente disso e inquieta com a violencia racial, sexual e de classe, Lélia se junta à Assembleia Nacional Constituinete de 1988, palestrando na “Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias”, uma contribuição que forteleceu questões pertinentes à população negra e sua visibilidade. Isso abriu caminhos, anos mais tarde, para o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 10.639/2003 e 11.645/2008 – leis que tornam obrigatório o ensino da História e Cultura afro-brasileira e indígena nas escolas públicas e particulares.
Acervo JG/Foto Januário Garcia.
Com a ideia de ocupar cada vez mais espaços, concorreu às eleições e integrou cadeiras em cargos políticos partidários, porém, se decepcionou com as pautas e se retirou. Em seu artigo Racismo por Omissão, publicado no Jornal Folha de São Paulo em 1983, faz uma crítica, ainda atual, a quem se afirma revolucionário e popular, mas apaga a luta do “crioléu, do mulherio, da indiada deste país”.
No texto, a professora não deixa de mencionar o quanto tais partidos políticos, que se dizem populares, ao se focar na resolução de uma questão de classe – entre pobres e ricos – acaba se “esquecendo” do grande problema que articula a desigualdade, o racismo. Não falar do racismo e procurar formas para combatê-lo no Brasil é tirar de cena a maioria da população e nos iludimos com a ideia de que somos “racialmente brancos e culturalmente ocidentais, europeizantes”.
Lélia ao evidenciar a importância do povo negro conhecer a sua história, mobiliza um retorno que não está nos livros didáticos. Esses, ao nomear o invasor de “salvador” e o escravocrata de “proprietário”, silênciam a história de violência, estupro e morte que massacrou indígenas e africanos, logo no “descobrimento” do Brasil.
Ao escancarar isso, no decorrer de sua obra, a professora demonstra que a história do povo negro vem de muito antes do século XV e tem como berço a África, que também é o berço da humanidade. Ao se fortalecer disso, Lélia pensa o século XX, seu contexto de vivência, de forma lúcida e focada no que era preciso fazer para que a luta se espalhasse e tivesse continuidade.
“Se eu, enquanto professora, universitária, etc e tal, chego na universidade e fico calada, e não abro minha boca, em relação a questão racial, bolas, e saio para as passeatas levantando bandeiras eu não tô sendo militante coisa nenhuma. A minha militância tem que se dar, evidentemente, aí me recordo de um dos pontos básicos do programa de ação do MNU, que era justamente você levar a questão racial onde quer que você esteja. Você que tem que levar para o seu campo de trabalho mesmo”, pontua Lélia Gonzalez.
Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje
Como filha de Oxum – potência cósmica da beleza, do ouro, das águas e que traz um espelho que possibilita ao mesmo tempo se enxergar, enxergar os seus e quem veio antes – a intelectual transitava pelos espaços sem se esquecer de suas raízes e fincava conceitos inéditos, criativos e enegrecidos para se explicar o pensamento brasileiro a partir da diáspora. E foi pelo Candomblé que Lélia encontrou sentido para tudo o que fazia, especialmente, na academia e na sua atuação transdisciplinar e transnacional em busca da compreensão de uma outra história da negritude.
Contra o embranquecimento da cultura brasileira, que é um projeto de nação ainda em andamento, a professora nos conduz em seus escritos ao ato de perceber a nossa história pelo nosso espelho ancestral e convida a sociedade a se reconhecer não mais como um povo de ascendência europeia. A sabedoria africana que diz que Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje está presente no percurso dessa mulher negra que forjou ferramentas para refazer o passado que nos foi imposto. Ela nos lança nas encruzilhadas, nas possibilidades outras, abre caminhos inéditos de compreensão dentro do pensamento brasileiro e catimba – que significa astúcia, prejudicar o adversário, fazer outro jogo – a estrutura racista da história única, que é contada nos livros didáticos.
Nesse caminho, como uma mulher do Candomblé, a intelectual nos ensina outra estratégia, a partir de Exu e Oxum, que é a necessidade de refazer nosso imaginário a partir de nós mesmos, que nossos passos vêm de longe, muito antes da diáspora forçada, e do quanto os saberes, junto aos povos indígenas, é um encontro espiritual de sobrevivência.
Além disso, não é à toa que foi a primeira mulher negra a representar o Brasil no exterior, levando ideias amefricanas e Ladinas – dois conceitos que ela desenvolveu para contar sobre a criatividade e estratégias de vivência diaspórica do povo negro ao longo do continente americano.
Fonte: Acervo Lélia Gonzalez.
Continuidade
A desaparição física, com a morte em 10 de julho, no Rio de Janeiro, devido a um infarto, interrompe uma trajetória de muita reflexão que ainda tinha pela frente. No entanto, como a ideia de morte para o povo negro, que traz o legado africano, não significa fim, mas continuidade, a professora, filosofa, antropologa, militante e feminista negra renasce em cada chamado por seu nome e impulso de seu legado.
A intelectual deixou textos clássicos como Racismo e sexismo na cultura Brasileira (1984), A categoria político-cultural de amefricanidade (1988) e Mulher Negra (1981). Como livros de sua autoria, temos Lugar de Negro (1982), publicado pela editora Marco Zero, com Carlos Hasenbalg, e Festas Populares no Brasil (1987). Em 2010, os professores Alex Ratts e Flavia Rios, lançaram a primeira biografia de Lélia Gonzalez, pela editora Selo Negro. Em 2018, a União dos Coletivos Pan-Africanistas lança, de forma independente, um compilado de textos inéditos escritos pela própria Lélia, o livro se chama Primavera para as rosas negras. Em 2020, o mercado editorial se atenta à grandeza da pensadora brasileira e lança o Por um feminismo afro-latino-americano, pela editora Zahar, organizado por Flávia Rios e Marcia Lima.
“Sabe qual é o negro mais bonito do mundo? É aquele que tem consciência de suas raízes, de suas origens culturais. É aquele que tem a atitude de quem sabe que é ele mesmo, e não um outro determinado pelo poder branco”, Lélia Gonzalez.
Axé Muntu!
Saudação criada por Lélia ao misturar as línguas Iorubá e Kimbundo.
Axé, do Iorubá = força, energia, poder.
Muntu, do Kimbundo = gente.
Para mais informações sobre a vida, obra e estudos sobre Lélia Gonzalez, acesse o site do Projeto Memória.
Imagem em destaque: Acervo Lélia Gonzalez.
*Texto de Ludmila Almeida e Eduarda Nunes.