Favela da Rocinha consegue movimentar até R$ 1 bilhão internamente. Foto: Michel Silva

A pandemia evidencia a importância da presença e atuação do Estado na economia. É o que diz Laura Carvalho, professora do Departamento de Economia da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP), no seu mais recente livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado”, publicado pela editora Todavia. 

Na obra, a economista discute as consequências inéditas que a pandemia traz para a economia brasileira, visto que mal havia conseguido se recuperar da crise de 2015-16. O desmonte da Educação e Saúde nos últimos anos proporcionou déficits expressivos para o controle da covid-19, e a ideologia do Estado Mínimo, agenda até então do governo, precisou contrapor-se para enfrentar a crise, que demanda um Estado forte, eficiente e que destine recursos para áreas necessárias, como defende a autora. 

Segundo Laura Carvalho, a pandemia revela cinco funções fundamentais Estado: estabilizador da economia, investidor, protetor, prestador de serviços à população e empreendedor. Por telefone, a economista conversou com o Favela em Pauta sobre os papéis do Estado em momentos de crise e o reflexo do vírus na economia.

Favela em Pauta: Quais são as cinco funções do Estado que a pandemia revelou?

Laura Carvalho: O primeiro elemento é esse papel do Estado como Estabilizador da economia. Em contextos de crise, o setor privado, as famílias, as empresas, assumem uma postura defensiva de tentar sobreviver e, com isso, cortam seus gastos e fazendo com que a crise fique mais profunda. Quem tem a possibilidade de fazer o contrário, ou seja, de gastar mais para atenuar essa crise e para se contrapor ao setor privado é o Estado.

O segundo papel é do investidor em infraestrutura no país. Em particular, a pandemia mostra como temos desigualdades no acesso ao saneamento básico, à moradia, ao transporte, e esses aspectos têm feito com que a disseminação do vírus em regiões mais pobres seja mais rápida. 

O terceiro papel é do Estado protetor. Então, aí estão as redes de proteção social, destinadas há uma massa de trabalhadores vulneráveis que não têm nenhum colchão de renda e que trabalham em empregos precários ou informais e precisam ter algum tipo de margem de segurança, e é o Estado que oferece esse colchão. 

A quarta função do Estado que a pandemia escancara é a de prestador de serviços à população. Vemos no caso da Saúde a importância do SUS (Sistema Único de Saúde), ainda que também tenha mostrado muitas desigualdades de acesso.

E, finalmente, o quinto é o que eu chamo de Empreendedor, está ligado aos investimentos que o Estado faz na ciência, na tecnologia, no desenvolvimento produtivo do país. As nossas carências nessas áreas se mostraram relevantes quando a gente não tinha capacidade de produzir equipamentos médicos, máscaras, os respiradores, mesmo o álcool em gel inicialmente. Tínhamos dificuldade, escassez de insumos, testes, para atender às necessidades que essa pandemia impôs. Mas, em outros casos, nem dominamos a tecnologia. E, é claro, a gente viu também a importância de instituições de pesquisa, das universidades públicas, que apesar de tudo ainda sobreviveram ao corte de recursos e conseguiram contribuir para o cenário. 

O que significa ou pode significar uma crise oriunda do contágio de um vírus?

A crise de 2008 começou no setor financeiro, com os bancos, seguradoras, instituições que oferecem crédito e isso, é claro, contagiou a economia real porque no momento que o setor financeiro começa a quebrar e não oferta mais empréstimos, vai batendo sobre as empresas, as famílias, levando à uma crise muito profunda. Essa veio da saúde pública e, por isso, tem característica e natureza distinta. Nesse sentido, é importante destacar que uma crise que começa a partir de uma pandemia, só vai ser resolvida quando for resolvida a sua origem, ou seja, o contágio do vírus. 

Então não basta ter medidas econômicas e, em particular, não são as medidas quarentenárias, ou seja, as imposições de restrições à circulação de pessoas e de abertura de estabelecimentos que está provocando a crise. Essas medidas são uma resposta à origem da crise, que é o vírus, não são as medidas tomadas para combater o vírus. Precisamos ter uma resposta à essa crise que se dê em etapas, e a primeira dessas é resolver a questão da saúde pública. 

O  auxílio emergencial foi suficiente para minimizar os danos causados pela pandemia?

No contexto em que as pessoas precisavam ficar em casa e, ao mesmo tempo, a gente sabe que quase metade da população brasileira não trabalha em empregos formais e não tem a capacidade de garantir a sua sobrevivência ficando em casa, era crucial não só para atenuar o colapso econômico, mas para reduzir o contágio pelo vírus, oferecer uma garantia de sobrevivência à população. Os mais pobres são mais vulneráveis tanto na crise econômica- a perda de renda- como na saúde pública, ou seja, também é a população com mais risco de se contagiar, de não ter acesso à saúde decente e acabar tendo casos mais graves da doença. Então era muito fundamental ter esse tipo de rede de proteção. 

O auxílio emergencial não é a medida perfeita, tem uma série de falhas na implementação que até impuseram mais riscos à população no momento de sacar os recursos nos bancos. Houve também uma demora na aprovação, uma série de problemas na execução, mas pensando no sentido mais amplo, a medida vai na direção correta. Precisamos lutar e se mobilizar para que essa medida não seja interrompida quando, claramente, a crise não se encerrará nesses três meses que a medida prevê. 

Como a senhora avalia a alteração da lei que criou o auxílio emergencial e, agora, obriga quem tiver rendimento superior ao limite de isenção do Imposto de Renda terá que devolver o auxílio em 2021?

Olha, eu acho que não é uma alteração que beneficia uma economia que está numa crise dessa profundidade. Na verdade, você quer nesse momento que o Estado atue de todas as formas possíveis para atenuar o colapso econômico, além do contágio pelo vírus. Significa que você precisa que as pessoas alterem o menos possível o comportamento de consumo e os gastos para que a economia não fique paralisada. 

Anunciar que as pessoas terão de pagar de volta o benefício no ano que vem acaba tendo um efeito de criar ainda mais insegurança na população. Nesse cenário de incerteza de emprego tão significativo, a medida tem o efeito de criar uma postura ainda mais defensiva, porque as pessoas estarão menos dispostas a realizar os seus gastos e contribuir para atenuar à profundidade da crise.

Qual é a sua opinião sobre os impactos da pandemia nas formas de consumo das classes C e D?

Eu acho que a gente ainda não tem a dimensão porque os dados sobre a economia ainda não começaram a aparecer, mas o que a gente sabe é que essa é a crise mais profunda da nossa história. A pandemia se dá sobre um contexto em que a informalidade era recorde, o desemprego era muito elevado e a renda ainda estava em queda para as camadas mais vulneráveis. 

Não há dúvidas de que a gente tem um choque que levará muitas pessoas a entrar em uma espiral de pobreza. E a gente sabe que a pobreza não é algo que necessariamente conseguimos dar conta de sair facilmente. Quanto ao consumo, eu acho que a gente está diante de um quadro que o consumo está sendo feito para a sobrevivência. As pessoas estão consumindo o que é essencial, sobretudo na base da pirâmide. 

A informalidade vem crescendo exponencialmente e tem tido bastante expressão nos trabalhadores de aplicativos que são, na maioria, dos casos, mal remunerados e submetidos a jornadas de trabalho extenuantes. Qual é o risco disso para a economia e as pessoas?

As pessoas que estão nesse tipo de trabalho não sabem exatamente quanto vão receber, há uma variação muito forte dos rendimentos porque os preços, os valores, as tarifas, são elementos dos quais a gente não tem transparência nem previsibilidade. Ao não ter nenhum tipo de segurança, as pessoas assumem uma postura ainda mais defensiva. E isso faz com que a economia não gire. Você tem um monte de gente que não tem condição de entrar no mercado da mesma maneira para uma recuperação. Isso já vinha desde antes da pandemia, e a gente via essa massa de trabalhadores informais e a desigualdade que só aumentava e estava, inclusive, impedindo a economia brasileira de voltar a crescer. 

As condições sanitárias das favelas e periferias do Brasil são favoráveis à disseminação do vírus, por conta da alta densidade populacional, estrutura deficitária entre outros fatores. Atuação do Estado, no entanto, é mínima para suprir essas necessidades. Qual é o impacto na economia?

Para muitas áreas de favelas e periferias, o Estado nunca se fez presente da maneira como deveria e isso está muito claro com a pandemia. Como que, na verdade, as comunidades tiveram que tomar o lugar do poder público, criando redes de solidariedade, de garantir a sobrevivência da população mais vulnerável, quando quem deveria estar fazendo isso é o Estado nas suas várias esferas. A gente precisa, inclusive, pensar como aproveitar essas redes de solidariedade que foram criadas para pressionar e se mobilizar para  que elas se tornem políticas públicas, para que as soluções que foram encontradas pela sociedade civil possam ser usadas pelo poder público. 

Serviço

Livro: Curto-Circuito: O Vírus e a Volta do Estado
Editora: Todavia
Preço: R$ 14,90 na versão e-book e R$ 34,90 impressão sob demanda (144 páginas).

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