Vito Ribeiro / Witness Brasil

O lugar que se ocupa na história pode fazer toda a diferença no final do filme.

Imagine uma cena clássica do telejornal de meio-dia. A polícia subiu a favela durante mais uma operação para conter o tráfico de drogas na região. A imprensa, protegida pela polícia, por seus coletes e suas câmeras, segue na responsabilidade de compartilhar as informações sobre a operação que adentrou a favela e, do estúdio, um comentarista traz informações relevantes e tenta contextualizar a operação.

Congelamos essa cena e é fácil visualizar a imagem de dois policiais agachados, fuzil apontado para dentro da favela, pessoas andando ao fundo. A cena constrange. A vida acontece na favela. A câmera do jornalista filma tudo isso, por cima do ombro dos policiais.

A favela sempre esteve em pauta, e a posição da câmera, de fora para dentro, limita-se a registrar o olhar de quem entra. Mas quem olha a favela nem sempre enxerga suas complexidades e valores. Pela presença da polícia, ou pela ausência de toda e qualquer outra presença do Estado na favela, a violência institucional é cotidiana. Enquanto muitos acreditavam em uma democracia plena no Brasil, quando a democracia ainda não caminhava em “vertigem”, um amigo acordava às 6 horas com um policial arrombando a porta de sua casa, sem nenhum mandado, sem nenhuma justificativa.

A “versão oficial” da notícia é sempre de que a polícia sobe o morro para “proteger o cidadão”, até que surgem inúmeras comunicações, vídeos e provas que desmontam essa narrativa, evidenciando a corrupção policial, violações de direitos e execuções extrajudiciais. Vídeos que saem de dentro para fora da favela e evidenciam uma realidade que, algumas vezes, contraria a versão do telejornal de meio-dia. Os grandes veículos de comunicação, apesar de conterem diferenças políticas e comerciais, trabalham em equipe, construindo e reproduzindo uma “versão oficial” da notícia – que geralmente contempla a perspectiva de empresários e políticos e criminaliza movimentos sociais, insurgências, o povo e sua condição de pobreza.

As organizações e os projetos sociais em ebulição nas últimas décadas exerceram um papel fundamental na construção das bases de formação para os movimentos de contranarrativas que passaram a surgir. As mídias comunitárias e alternativas que nascem nas favelas buscam fazer uma comunicação que não apenas olha para aquele território, mas também o enxerga em suas complexidades e valores porque conhece suas regras e dinâmicas, e a popularização do acesso à internet ajuda na disseminação desse conteúdo que extrapola o “controle editorial” presente nas redações.

As matérias produzidas por jornalistas que moram nas favelas tomam repercussão quando replicadas, muitas vezes gratuitamente e sem créditos, por um grande jornal ou veículo de mídia hegemônico. Esse ambiente reduziu aqueles que poderiam trazer certa diversidade e perspectiva para a cobertura jornalística desses espaços a meros personagens, fontes de informação.

Construir essa percepção foi fundamental para que, em 2017, eu cocriasse o portal Favela em Pauta, trabalhando com o conceito de “jornalismo profissional” nos temas relacionados às favelas cariocas e trazendo um olhar de dentro delas. De maneira geral, analisamos que os grandes veículos de comunicação controlam a narrativa e direcionam o olhar para a comunicação dos temas, pessoas e territórios favelados, quase sempre pautados pela falta. Além disso, constrói-se uma narrativa da necessidade de “contrapartida” quando pautamos a importância de nossa participação em eventos, debates e congressos, como se fosse demérito ser jornalista e morar na favela.

Ironicamente, buscamos construir estratégias para ultrapassar os desafios impostos por empresas, organizações e pessoas que, muitas vezes, trabalham pela redução da desigualdade social, mas reproduzem opressões estruturalmente impostas, para gerações que desafiam essa estrutura desigual e alcançam acesso aos espaços considerados de poder, intelectualidade e mais. É quase como se precisássemos justificar nossa presença nesses espaços.

Há dois anos, organizei um grupo de WhatsApp que reúne trinta jornalistas e/ou estudantes de Jornalismo de diferentes favelas do Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e Belo Horizonte. Assim como eu, eles representam a primeira geração de universitários de suas famílias. A primeira experiência foi organizar um curso de jornalismo de dados com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com conteúdo criado especificamente para o perfil do grupo. O mesmo curso foi replicado em outras três cidades. O maior desafio foi o tempo. Sem dinheiro e com poucas referências, essa articulação demorou quase um ano para se materializar. Aprendemos que os desafios são muitos e que precisamos encontrar outras fontes de financiamento para sustentabilizar as ações que construímos aqui. Desde então, realizamos diversas atividades de formação para jornalistas favelados com o objetivo de ampliar repertórios e leituras de mundo a partir desse crescimento coletivo.

Nós nos apropriamos das ferramentas disponíveis para conseguir realizar estudos on-line e produção de diferentes conteúdos de maneira participativa e colaborativa – dessa forma, até quem não participa diretamente da produção textual, audiovisual ou estratégica é alcançado pelo processo criativo que fica registrado no chat –, e, assim, fortalecemos nossa incidência em rede. Com nosso próprio celular, construímos todas as etapas de produção de uma reportagem e acreditamos que o conjunto de ferramentas, construídas coletivamente, pode gerar resultados expressivos para a transformação que estamos trabalhando para construir, principalmente por meio da produção do repertório necessário e do entendimento de que nós, jornalistas favelados, podemos produzir conteúdos como os verdadeiros sujeitos da notícia. A própria percepção de nossa vida e trajetória contribui para a transformação social e a redução da desigualdade porque constrói caminhos de possibilidades para outros, como nós, ocuparem os mesmos espaços, e ainda maiores.

O jornalismo brasileiro, que sempre pertenceu às elites, vai precisar aprender a lidar com a geração de pobres que vai contar suas próprias histórias. Não é à toa que a história do Brasil parece ser contada da perspectiva de quem olha de fora, e, apesar de não fazer nenhum sentido, seguimos reproduzindo essas quase parábolas como verdades absolutas. A autora Lilia Moritz Schwarcz, em Sobre o autoritarismo brasileiro, conta o esforço de construir uma história digna para um Brasil que, ainda em formação, carregava tantos dilemas complexos em trajetória.

A própria história do descobrimento e colonização é contada da perspectiva de quem, do barco, anuncia “Terra à vista”, e nunca da perspectiva de quem vivia no paraíso e teve sua cultura, território e dinâmicas de sobrevivência destruídos e corrompidos. A história da escravidão é contada a partir da construção de uma heroína branca, a princesa salvadora e rica que, com benevolência e superioridade, assina um papel que liberta os cativos. As histórias de resistência e luta de nossos ancestrais escravizados e indígenas são colocadas no lugar da rebeldia, da loucura, dos fujões, ou nem sequer são contadas.

Um país que carrega em sua história o peso de reduzir a humanidade, tratando como propriedade seres humanos de pele preta, descendentes de reis e rainhas, é o mesmo que transforma em “sujeitos matáveis” aqueles que têm a condição de pobreza imposta pela desigualdade social e pelo racismo estrutural.

Que mais pobres e pretos narrem suas próprias histórias. Não seremos pauta, nós pautamos a nossa existência! Favela em Pauta.

Imagem destaque: Vitor Ribeiro/Witness Brasil.

Bastidores do FP

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