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Completados dois anos de pandemia, os povos ciganos/romani, lançados ao descaso e inexistência, necessitaram criar, diante de mais uma ameaça à vida, estratégias de sobrevivência com as próprias mãos

As cicatrizes da pandemia infiltram de formas diferentes as pluralidades culturais e geográficas do Brasil. Tanto que é possível afirmar que a crise sanitária da covid-19 expôs a estrutura racista e violenta, colocando em falha a ideia de direitos humanos e nos fazendo se perguntar: quem tem direito a ser humano nesse país? Quem pode acessar a sobrevivência e uma vida digna diante da calamidade? 

A produção do ódio, escancarada na pandemia, é fomentada pela falta de dados e de compreensão dos povos que fazem o Brasil ser Brasis. São pessoas, povos, comunidades tradicionais que gritam há séculos em busca de serem reconhecidos enquanto gente, mas quem os ouve?

Fora dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e de um mapeamento completo, a população Cigana – também conhecida historicamente e em alguns lugares no país como Romani -, que está no país há mais de 400 anos, ainda aparece de forma tímida em algumas estatísticas oficiais do governo. No entanto, temos estimativas que informam que essa população varia entre 750 mil e 1 milhão de pessoas no país

De acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), do IBGE, em 2011 foram identificados 291 acampamentos ciganos/romani, localizados em 21 Estados, sendo Bahia, Minas Gerais e Goiás os de maior concentração. Mas aqui nada se fala de comunidades sedentárias – com residência fixa – que são as mais numerosas. Segundo informação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que traz dados de 2018 sobre o Cadastro Único, temos uma outra paisagem territorial que indica que os povos ciganos/romani estão presentes em todos os Estados da federação.

Quem ouve a população cigana/romani?

O cenário de acesso à saúde durante o período de pandemia, para os povos ciganos/romani, revelou o descaso que se mostra na relação precária entre o Sistema de Saúde pública do Brasil e as comunidades tradicionais. Como resultado de uma onda de desmonte da saúde, logo ao início da gestão de Bolsonaro, foi extinta a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), do Ministério da Saúde. 

Essa secretaria, em vigor desde 2007, era responsável por pensar ações com capacitação e promoção de educação em saúde específicas para atuação junto a cada grupo social, como os povos ciganos/romani, quilombolas, do campo, da floresta, população de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e travestis, população em situação de rua e outros.

Inexistentes na Constituição Federal de 1988, foi somente a partir do Decreto 10.841, de 25 de maio de 2006, quando se instituiu o dia 24 de maio – o Dia Nacional do Cigano – no Brasil, que essa população começou a ter reconhecimento público e se tornar parte do debate de acesso às políticas públicas. 

No ano de 2013, foi lançado o Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos, coordenado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), na gestão de Luiza Bairros, mulher negra. Através deste guia os povos ciganos/romani foram incluídos como grupo de atenção, não só às ações afirmativas, como também à política de cotas e às políticas de saúde justa. Tais marcos legais foram ignorados pelo governo de Bolsonaro, nesses dois anos de pandemia. 

Lançados ao esquecimento histórico, a população cigana/romani, logo nos meses de março e abril de 2020, sofreu o reforço de estereótipos. Ao impor, mais uma vez, a visão racista, ciganofóbica e de desprezo à pluralidade enraizada à história do Brasil, várias famílias no sul do país foram expulsas de seus acampamentos por serem taxadas como vetores de transmissão da covid-19. Nesse enfrentamento, associações ciganas/romani, grupos de pesquisa, ativistas e pesquisadoras/es publicaram uma nota pública repudiando o ato, que fere diretamente os direitos humanos.

“Autoridades municipais de Cachoeira do Sul (RS), Imbituva (PR) e Dois Vizinhos (PR), expulsaram de seus territórios de pouso, na última semana de março, grupos de ciganos Calon que vivem de forma itinerante. […] Na cidade de Guarapuava (PR), no dia 02 de abril de 2020, houve uma tentativa de expulsão de um grupo cigano, mas devido a intervenção do Ministério Público esta expulsão não pode ser efetivada. As autoridades justificam os seus atos de forma discriminatória”, afirma o documento.

Abraham Weintraub durante reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020.

Como se isso não bastasse, no mesmo mês, o então ministro da educação, Abraham Weintraub, expressou, em reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, o seu posicionamento diante da diversidade que constitui o país. “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. ‘Povos ciganos’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios”.

“Entre o fascínio e a repulsa, nós ciganes circenses existimos e reexistimos”

Se o âmbito da cultura foi um dos primeiros a ser atingido com a necessidade de isolamento social, a arte circense, feita por pessoas ciganas/romani, sentiu ainda mais esse efeito. Isso se deu não só devido a impossibilidade de fazer público, o que requer aglomeração, mas também pela descompreensão tanto sobre quem compõe essa arte, quanto da aprovação das leis de incentivo do governo, que desconhece a demanda de infraestrutura que o circo necessita para acontecer.

A arte circense é um traço proeminente da cultura cigana/romani, mas ao longo do tempo ela vem sendo prejudiccada por desinteresse público de investimento. Muitas vezes tida como aquém de outras artes como o teatro, a música e o cinema, “o nicho circense é considerado o primo pobre da cultura até hoje”, é como descreve Roy Rogeres, cigano Calon de tradição circense, jornalista, multiartista, ativista, mestrando em estudos interdisciplinares na Universidade Federal da Bahia e integrante do Coletivo Ciganagens

O multiartista, que viveu a maior parte de sua vida de forma itinerante e faz parte de uma das maiores famílias ciganas circenses do Brasil, a Família Fernandes, pontua que muitos desse ramo artístico tiveram que contar com o apoio das pessoas, de solidariedade, doações e, mesmo assim, vários passaram fome e faleceram com a covid-19. Também, grande parte não sabe ler, nem escrever e vive em itinerância, portanto, têm maiores dificuldades de submeter projetos à editais que exigem um endereço fixo e uma escrita formal. 

“Quem vê aquela magia, quem vê aquele espetáculo ali por baixo das lonas, quem vê o palhaço sorrindo, as pessoas felizes, não consegue imaginar o que é pra conseguir montar um circo, para se chegar em um lugar em horários complicados, terrenos difíceis, montar os trailler, barracas, baús, acampamento”, conta Roy. “É muita dificuldade e precisa, realmente, que as pessoas estejam com força, bem alimentadas, bem cuidadas. Com a pandemia tem sido muito difícil”.

Roy ainda diz que a ausência de dados consistentes sobre os artistas circenses e a população cigana circense, demonstra a invisibilidade lançada a esses que fazem a cultura brasileira acontecer todos os dias. Mas a existência desses artistas é percebida historicamente, eram eles que animavam as festas da coroa portuguesa, que logo depois construiu formas de inferiorizar essa população.

Segundo a História dos ciganos no Brasil, já em 1727, Dom Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, pediu providências contra artistas ciganos/romani que realizavam “com grande aparato, comédias e óperas imorais”. 

Em 1808, quando a família real portuguesa veio refugiada para o Brasil, os ciganos/romani eram contratados como artistas (não só circenses) para divertir a corte de D. João VI. “Quando se comemorou a elevação do Brasil a Reino Unido em 1815, no segundo dos três dias de celebrações, Dom João VI levou a corte inteira e a delegação estrangeira do Campo dos Ciganos para uma tarde e noite de danças e entretenimento”. 

Esse cenário foi sendo modificado, principalmente, pelo discurso nacionalista e pela formação da identidade brasileira que desconsiderava os povos ciganos/romani, que se situavam fora do mito das três raças.

Entre o fascínio e a repulsa, nós ciganes circenses existimos e reexistimos. O circo, vou me arriscar talvez, é a arte mais completa de todas”, diz o multiartista ao se referir ao teatro, paródia, palhaçada, ao ato de tocar instrumentos, música ao vivo, espectáculos, pois tudo isso é encontrado  no circo. Os famíliares de Roy comandam vários circos pelo país como o circo Miraculous, Irmãos Fernandes, Hollyday, Bigbrother, Arena Vip, Indianapóolis, e já tiveram outros como Arte Falacio, Mexicano, Colliseu, Transbrasil e Norte Americano. 

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Ao citar tantos nomes de circos que sua família faz parte, Roy lembra da importância de sua irmã Irisma como uma das que impulsionaram a cultura circense na família. Especialmente após a violência que ocorreu com seu pai, cigano circense, morto durante um espetáculo. 

Como forma de documentar a importância da arte circense e da história de Irisma Fernandes, conhecida como “Tati, a cigana”, o multiartista dirigiu o documentário intitulado: Debaixo das lonas tudo é mais bonito!, um registro sobre a trajetória e arte de uma das mais destacáveis artistas circenses brasileiras.

O investimento em arte no Brasil ainda não alcança de forma efetiva artistas circenses e esse desamparo só aumentou com a pandemia. Se reinventando, na venda e nos negócios como forma de se manter, os povos ciganos/romani “são pessoas que nunca tiveram medo de trabalhar, de enfrentar dificuldades”, afirma Roy lembrando que muitos podem até não saber ler ou escrever, mas sabem levantar circos, tem o saber da marcenaria e do ferro, e fazem grandes números circenses como o globo da morte.

Se fala mais do vírus do que das pessoas 

“Teve uma época que tudo fechou, teve os decretos e isso fez com que a comunidade passasse muito sufoco nessa questão do básico que é a alimentação. Nós fomos se virando, nós próprios da comunidade fomos nos ajudando uns aos outros”, relata Marcilânia Alcântara, cigana Calin, professora da educação básica no município de Sousa, Paraíba, conselheira no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) e integrante do Coletivo Ciganagens. 

“Se a  gente já era invisível para a sociedade, com a pandemia a gente ficou mais invisível ainda, porque o foco foi direcionado para o vírus e é como se a população cigana nem existisse”.

Mesmo quando a população cigana/romani se encontra fixada, sedentarizada em um local, as condições de vida continuam complicadas, de forma que são impedidas de acessar recursos como saneamento básico. Por ter sua vida em risco, discriminados historicamente, tais pessoas são lançadas às margens das cidades, onde o poder público não se interessa em dar atenção. Isso é o que ocorre há mais de 30 anos com a comunidade do município de Sousa, Paraíba, que tem cerca de 2 mil pessoas, a maior comunidade cigana sedentarizada do país.

Localizada bem distante do centro da cidade, a comunidade de Sousa não tem saneamento básico e o acesso à água é muito escasso. Se lavar as mãos significa, antes, ter acesso a água de forma contínua, como forma de se prevenir da covid-19, em Sousa, onde a água chega uma vez por semana, tal necessidade é disputada. Toda vez que a água chega é estocada para o uso nos próximos dias, o que gera outro agravante: a proliferação da dengue. 

Além disso, a garantia da saúde pública também não foi e não é respeitada. Apesar de existir um Programa Saúde da Família (PSF) na comunidade, Marcilânia afirma que a própria equipe de saúde não compreende a população cigana/romani. Eram muitos os olhares de desprezo e a falta de atenção aos costumes. “Teve uma enfermeira que disse que as mulheres ciganas fediam, foi um rebuliço muito grande, mas a gente conseguiu tirar ela do posto. A gente estava no nosso direito, se está lá para atender a população cigana, que atenda com qualidade, porque assim, como qualquer cidadão brasileiro, a gente paga os impostos”, conta.

O acesso ao auxílio emergencial também teve complicações não só pela falta de acesso a internet, mas também pela necessidade de saber mexer em um aplicativo, algo fora da realidade de muitos da população cigana, isso sem falar da questão burocrática de documentação.

Foram vários os ofícios que Marcilânia e seu cunhado enviaram para à secretaria do Estado, para a prefeitura, para pedir ajuda sobre as condições da comunidade. Apenas duas vezes receberam ajuda do governo federal, com doação de cestas básicas, mas também foram só essas duas vezes desde que começou a pandemia. 

Por ser uma comunidade tradicional, com costumes próprios, ficaram desassistidos sem um trabalho direcionado a respeito da prevenção e do que realmente era esse vírus. Apesar disso, os próprios jovens ciganos/romani se organizaram e realizaram tal trabalho de casa em casa, orientando, especialmente, sobre o isolamento social às pessoas mais velhas, um desafio cultural. “É um povo muito unido e junto, de muito amor e afeto”, ressalta a professora Marcilânia ao falar sobre a dificuldade de se fazer um isolamento social como era comumente difundido pelo Ministério da Saúde. 

“A gente teve muitos casos de covid. E outra coisa que eu vi foi a saúde mental, porque a gente tá sempre junto e de repente todo mundo ficou em suas casas, não tinha mais aquela questão de estar conversando, dividindo o dia a dia, e prejudicou bastante a saúde dos jovens e das crianças”, aponta a professora ao lembrar do quanto o viver comum, as rodas de viola e a alegria dinâmica da comunidade foi afetada. O ritual do luto também foi alterado, sem a possibilidade de despedida coletiva, algo que antes era realizado durante alguns dias, essa tradição passou a ser feita de forma rápida e fora dos costumes.

Saúde pública para qual público?

Junto da ausência de assistência às comunidades tradicionais, o descaso com a vida diante da pandemia de direitos, de saúde e de dignidade, são atos perpetuados historicamente pela sociedade brasileira e autorizados pelo governo federal. Por isso, o “nós por nós” é fator de sobrevivência e reinvenção da vida pelos próprios povos ciganos/romani. Dos 27 Estados, somente o Rio Grande do Norte realizou um Plano emergencial para prevenção e enfrentamento da covid-19 como forma de abranger saúde e assistência social para tal população. 

De forma autônoma, pois não existe um plano nacional de enfrentamento à pandemia e, muito menos, de notificação sobre quais grupos estão adentrando ao sistema de saúde, o Instituto Cigano do Brasil (ICB) realiza uma contagem a partir dos dados de organizações locais. Até a última notificação, em toda a pandemia, 116 pessoas ciganas/romani faleceram devido a covid-19. 

Além disso, o Plano Nacional de Vacinação, anunciado em 15 de março de 2021, não considerou a população cigana/romani, mesmo sendo colocada como grupo prioritário pelo Conselho Nacional de Saúde em janeiro de 2021. Seguindo o calendário de vacinação comum, tal população, que é vulnerável historicamente e invisibilizada enquanto pessoas de direito, tiveram que lidar com a chegada tardia da vacina, com a necessidade de cuidado redobrado e se arriscar em busca de sustento. 

O respeito para com a tradição é, historicamente, uma barreira quando o assunto é saúde. A efetividade do plano específico de atenção à população cigana/romani, que já existe enquanto Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani pelo SUS, ainda falha quando em se adequar a como as comunidades se organizam culturalmente. Uma questão não só de responsabilidade dos postos de saúde, mas principalmente da falta de investimento, pelo governo federal, estadual e municipal, em localidades onde vivem as comunidades.

Um atendimento alinhado aos costumes da comunidade envolve ter médicas e médicos com pacientes do mesmo gênero – médicas atendem mulheres e médicos atendem homens -, especialmente quando se trata de saúde sexual e reprodutiva; a não exigência de documentação e, muito menos, de comprovante de residência para o atendimento, algo legalizado desde 2011, mas ainda de desconhecimento de algumas equipes de saúde; acompanhamento e monitoramento em relação à saúde mental, à doenças crônicas, como diabetes, colesterol alto, hipertensão arterial e doenças que envolvem a falta de saneamento básico; o diálogo com a sabedoria da medicina tradicional da comunidade; informar e orientar sobre doenças como a covid-19; pontos,  levados em conta pela orientação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, que, inclusive, visam a atuação do SUS na redução e no combate à cigano/romanifobia.

“Ser de um povo tradicional é ter orgulho dessa ancestralidade”

Para compreender o quanto a pandemia impacta a população cigana e a garantia de vida digna, é preciso ampliar o olhar para além da área da saúde, assim é possível afirmar que muito antes da chegada da covid-19 os espaços de promoção de direitos sociais já estavam muito bem demarcados no contexto brasileiro. 

Dessa forma, a educação se torna, então, outro fator invisibilizado ao longo dos anos. À medida que as possibilidades de ingresso ao ensino aumentam para a população brasileira, tal realidade não acompanha a população cigana/romani.

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“Muitas vezes a gente é julgado, dizem assim: ‘ah, os ciganos não gostam de estudar’, não é isso. Além da gente oferecer a matrícula para a criança cigana elas têm que se sentir acolhidas naquele espaço, tem que oferecer subsídios para permanência da criança na escola. E acho que isso também contribuía para que elas abandonassem, de não se sentirem confortáveis e não se verem ali”, conta a professora Marcilânia Alcântara. 

Como já prevê a educação para os povos ciganos, normativa do Ministério da Educação, como parte da Educação para as Relações Étnico-Raciais, é direito dos povos ciganos/romani acessarem a educação, mesmo que estejam em situação de itinerância e com falta de documentos. 

Porém, a professora expressa o quanto essa educação ainda precisa ser um direito respeitado também no ato de se reconhecer nesse espaço, nos conteúdos e no processo educativo de forma positiva, e não só em datas específicas como o 20 de maio, no dia do cigano. Para isso, Marcilânia, que leciona em uma escola da comunidade, utiliza de brincadeiras, danças e contos ciganos para promover a autovalorização das crianças. 

Professora Marcilânia contando o conto: A ciganinha.

Ser mulher cigana é um desafio duplo. Mas se Deus concedesse dez outras vidas em todas eu queria ter nascido cigana. Eu amo os meus costumes, algumas coisas eu não concordo, por que é uma cultura muito patriarcal, muitas vezes os homens têm mais poder de voz dentro da comunidade, mas que eu vejo também que vem mudando. As mulheres ciganas também vem ascendendo, ela vem ocupando outros espaços, ela vem ganhando uma força que só a  mulher cigana é capaz”, conta a professora.

Conforme Aluízio de Azevedo, cigano Calon, jornalista, doutor em Informação e Comunicação em Saúde e assessor para Ciência e Comunicação da Associação Estadual das Etnias Ciganas de Mato Grosso (AEEC-MT), todo o processo de racismo e violência para com as comunidades e seus saberes afetam a autoestima da juventude. “Nas comunidades tradicionais de uma forma geral o índice de depressão é bem alto, principalmente, entre os jovens. Porque se vê diante de uma tradição que está sendo ameaçada o tempo inteiro, diante da exclusão de uma sociedade que não aceita, e aí fica esse jovem nessa encruzilhada”.

Aluízio de Azevedo é cigano Calon de Mato Grosso, jornalista, doutor em Comunicação e cineasta. Foto: Arquivo Pessoal.

Para gente não basta ser cigano, tem que parecer cigano. Eu amo parecer cigano. Ser cigano é sentir pulsar na alma, na véia, no coração, um sangue único, é amar uns aos outros de uma maneira diferente do que eu vejo dos grupos não ciganos, é um compreender o outro pelo olhar, reconhecer o outro pelo olhar, é um cuidado diferente, especial entre nós. Ser de um povo tradicional é ter orgulho dessa ancestralidade”, ressalta o multiartista Roy Rogeres.

A cultura brasileira também é cigana/romani

Minha Terra é o Planeta, Meu teto é o Universo, Minha Religião é a Liberdade. Sabedoria Cigana.

Sem registro histórico documentado por escrito, a diáspora cigana/romani atravessa os milênios até chegar em 1574 ao nordeste do Brasil. Ao longo dos anos, três principais grupos étnicos cigano/romani foram se formando no país, são eles: os Calon – o maior grupo e mais antigo aqui no Brasil -, os Rom e os Sinti. 

Cada comunidade se organiza de forma diferente, com línguas – tidas como ágrafas e utilizadas entre os parentes -, festejos, habilidades e percepções de mundo pertinentes a cada prática cultural, seja em sua forma itinerante, sedentária ou semi-nômade, o que expressa a pluralidade cigana/romani e seus modos de vida.

“A maioria veio degredado de Portugal, muitos chegaram nas galés – trabalho escravo -, e aqui chegando já tinha ordens do tipo: não deixar falar a língua, não deixar andar em bando, não deixar ler sorte. A proibição já vinha com Portugal. É uma memória dolorosa, uma memória que foi rompida”, lembra Aluízio de Azevedo. “Quando você vê, por exemplo, “palavras de baixo calão”, os portugueses querem falar que eram palavras em calon. Eles estão chamando a língua cigana de palavras de baixo calão”. No Brasil circula o sintó, o romamês e o chibi ou caló, línguas que vão se adequando às necessidades de cada povo, mas sempre atreladas à importância da manutenção da cultura oral milenar.

Eu, Dom João, pela graça de Deus, faço saber a V. Mercê que me aprouve banir para essa cidade vários ciganos — homens, mulheres e crianças — devido ao seu escandaloso procedimento neste reino. Tiveram ordem de seguir em diversos navios destinados a esse porto, e, tendo eu proibido, por lei recente, o uso da sua língua habitual, ordeno a V. Mercê que cumpra essa lei sob ameaça de penalidades, não permitindo que ensinem dita língua a seus filhos, de maneira que daqui por diante o seu uso desapareça.

História dos ciganos no Brasil

O jornalista ainda conta que, pautado pela memória oral de sua família, a grande maioria dos ciganos/romani vieram do Egito, depois chegaram na Turquia, Europa, por volta de 1.200 – 1.300 e em Portugal em 1.400 – 1.500.  

Já a historiografia aponta que possivelmente essa população tem origem no norte da Índia nos anos 1000 e depois se dispersaram em várias ondas migratórias pelo mundo. Uma dessas causas migratórias foi o massacre nazista que matou cerca de 500 mil ciganos/romani nos campos de concentração.

Segundo Aluízio, a música rural, o sertanejo, modas de viola, a catira, os trajes que compõem a ruralidade, as festas de quadrilha, festas de santo, a ideia de Brasil rural e caipira é composta ao longo dos tempos também pela população cigana. 

A luta por direitos à população cigana/romani é constante.

Além disso, a noção de música popular brasileira e do Samba é revista por Samuel Araújo e António Gueneiro no texto: O samba cigano: um estudo histórico-etnográfico das práticas de música e dança dos ciganos ‘calom’ do Rio de Janeiro e por Adalberto Paranhos em O Brasil dá samba?, em que demonstram as relações entre as práticas musicais e coreográficas ciganas, ibéricas e brasileiras no Rio de Janeiro, com a influência dos ciganos Calon. 

Esses autores ainda afirmam que nunca existiu um samba pronto, mas ele foi sendo construído junto aos grupos sociais, não apenas a população negra, mas também a cigana/romani a medida que vai se tornando algo nacional. 

A cultura brasileira também se expressa nos saberes medicinais tradicionais a partir dos territórios. Para registrar um pouco sobre essa experiência, o jornalista dirigiu o documentário “Diva e as Calins de Mato Grosso: Ontem, Hoje e Amanhã”, que conta a história da Mestra Diva, cigana Calon, raizeira, mestra da cultura cigana e vive em Mato Grosso, e suas parentas, além dos aspectos culturais, familiares, de liderança política, de manutenção dos modos de ser e de se organizar. 

Saiba mais sobre a relação entre a sabedoria com as plantas medicinais e as mulheres romani/ciganas emAs Romani/Ciganas do Cerrado e a existência de uma cultura milenar” e na Galeria Calin

São os povos tradicionais que vão salvar o mundo, porque são eles que conseguem ter uma interação harmoniosa com a natureza, porque com a sociedade ocidental a gente já viu que não dá, só acaba com a natureza”, afirma Aluízio. 

“Acreditem que é possível ocupar espaços, saibam que não estão sozinhos, que não se permitam perder uns aos outros sem lutar, sem denunciar, que não tenham medo de se colocar e que sigamos atuantes, atentes, vigilantes”, conclui Roy Rogeres em mensagem aos povos ciganos/romani.

Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo aqui publicado é de responsabilidade exclusiva das autoras e não reflete necessariamente a opinião das organizações.

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