Cerrado ensina

Os povos do Cerrado, em especial as mulheres, ensinam que manter o bioma de pé, pela sustentabilidade e saberes populares, é garantir alimento e água para toda a humanidade.  

O Cerrado já tem  65 milhões de anos e hoje é lar para mais de 25 milhões de pessoas. É a savana mais biodiversa do planeta, tanto em fauna quanto em flora. Também é considerado o “berço das águas”, que guarda os principais aquíferos do Brasil e do mundo: o Guarani, o Bambuí e o Urucuia. O bioma tem uma extensão territorial equivalente à soma das áreas dos seguintes países: Espanha, França, Alemanha, Itália e Inglaterra. Consegue imaginar o quão grande é o Cerrado?

A diversidade também está nos povos e nas comunidades tradicionais, que vivem nesse lugar há mais de 12 mil anos. São indígenas, quilombolas, trabalhadoras e trabalhadores, extrativistas, geraizeiros, vazanteiros, quebradeiras de coco, romani/ciganos, ribeirinhos, pescadores artesanais, barranqueiros, retireiros do Araguaia, agricultores familiares, fundo e fecho de pasto, sertanejos, entre tantos outros.

No coração do Brasil, essas guardiãs e guardiões das águas, da terra e das sementes, formam a última barreira contra a violência a esse grande ancestral que atravessa o país e conecta todos os outros biomas. Uma formação de rede e diálogo para a manutenção da vida. 

Porém, apesar de ser o segundo maior bioma da América do Sul, apenas 8% de sua área é protegida, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O Cerrado que alimenta, sustenta, educa e cura está ameaçado, e já perdeu 55% de sua vegetação nativa, conforme o monitoramento da Plataforma de Conhecimento do Cerrado.

É também o bioma que mais foi queimado nos últimos vinte anos, perdendo a biodiversidade de uma área que corresponde à soma do tamanho dos Estados de São Paulo e dois Rios de Janeiro, de acordo com o MapBiomas. A concentração de terras também é expressiva no Cerrado, só no Centro-oeste, 75% das terras são latifúndios, como aponta o Atlas Agropecuário. 

A falta de proteção do bioma possibilita a devastação de recursos naturais pelo modelo de desenvolvimento que apenas extrai e não promove sustentabilidade ao espaço. Isso, pela agropecuária e agrotóxico, retira as plantas nativas, que vivem ali a milhares de anos, polui os rios e acaba com as nascentes que alimentam o país. Ao todo, no Brasil, 90% do desmatamento ocorreu para a abertura de área de pastagens e monocultivos, denuncia o Dossiê Agro é Fogo.

O estudo “Soja e carne por trás do desmatamento do Cerrado” afirma que o desmatamento em terras privadas representou 66,7% do desmatamento total do Cerrado em 2020 e ainda, 68,4% desse total apresenta atos de grilagem de terras, desmatamento de terras públicas registrado por organizações privadas. E quem tenta proteger o seu território e o avanço descontrolado desse projeto, corre risco de vida. Segundo o relatório divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), no conjunto de conflitos, as comunidades tradicionais da floresta (indígenas, quilombolas e ribeirinhos) compõem 45% das vítimas. Sem terra e assentados são 32%. 

“Mulheres do Cerrado estão de pé e em luta”. Foto: Ludmila Almeida.

Quem defende o Cerrado luta desde 2010 pela aprovação da PEC 504/10 que instaura o reconhecimento desse bioma como patrimônio mundial, devido a sua importância para a humanidade e sua fragilidade diante do avanço do agronegócio. Se o Cerrado morrer, toda a humanidade vai sofrer as consequências, especialmente as mulheres, que além de combater a violência contra seus corpos e seus saberes ainda precisam resistir à violência contra a terra-território que nutri os seus.

“Seguiremos firmes, derrubando cercas e muros, enfrentando o machismo, o racismo, o patriarcado. Plantando sementes, colhendo frutos, flores, regando as raízes que são as veias da terra, o que liga o de dentro com o fora, regadas  com águas abundantes do Cerrado, que florescem nas serras e fazem brotar vidas e sonhos, fortalecendo nossas conexões com a Mãe Terra”.

Manifesto das Mulheres do Cerrado.

“A nossa história é muito grande”

Mulher de fé, agroextrativista, agricultora, geraizeira, guardiã da semente crioula e, atualmente, mestranda na Universidade de Brasília (UnB) no curso de sustentabilidade junto aos Povos e Territórios Tradicionais, Maria Lúcia é uma das protetoras do Cerrado. Suas lembranças de enfrentamento às máquinas que desmatavam as fontes de alimentos e nascentes de água nas proximidades do Rio Pardo, comunidade Água Boa, Minas Gerais, são de orgulho. Foram árduos 15 anos até a região conquistar, em 2014, o  decreto do Governo Federal sobre a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Nascentes Geraizeiras (RDSNG). Porém, até esse feito, a camponesa pontua que a conquista passou por  processos duros em que as mulheres foram fundamentais. 

Ela conta que, em 2011, para confrontar mais uma ameaça ao território, muitas mulheres e alguns homens, com o amparo do sindicato dos trabalhadores rurais, foram para a frente dos tratores. Isso porque grande parte dos homens saem da comunidade para trabalhar e quem fica na terra são as mulheres. Então, quem defende o território são, em sua maioria, as mulheres. “Vocês não vão desmatar nem mais um metro aqui, nós viemos parar as máquinas”, relata sobre o episódio. “Se o senhor teimar de desmatar aqui, a gente vai pra frente das máquinas e vocês passam por cima. Nós não vamos parar e só descemos daqui quando essas máquinas descerem na nossa frente”.

Maria Lúcia, defensora do Cerrado, enfrentou os projetos de destruição para garantir a permanência das nascentes.  Foto: Arquivo Pessoal. 

Com a chegada da monocultura do eucalipto na região do Alto Rio Pardo pelos anos de 1970 e 1980, a forma de trabalhar a agricultura e promover as tradições da comunidade estabeleceu entraves frente a perda da biodiversidade e das nascentes de água, que alimentam tanto cidades mineiras quanto paulistas. “A degradação foi tão violenta que também afetou os nossos pequenos terrenos, teve gente que foi encurralado. As empresas chegaram até os quintais das pessoas plantando eucalipto”, lembra. 

Pela vida, sem deixar o medo tomar conta, mesmo sofrendo ameaças de morte, vendo a polícia espancando agricultores, Maria Lúcia se juntava à frente de cada batalha. Venceram, coletivamente, muitas invasões de máquinas financiadas por empresários e autoridades. Outra vitória coletiva, a agroextrativista relata, foi quando as comunidades salvaram das mãos de um empresário, em um só dia, o desmatamento de uma área de 4 mil e 500 hectares de frutos nativos e nascentes, e que estava intacta.

“A coisa mais gostosa da minha vida é trabalhar na roça. Plantar, colher, um legado que recebi do meu pai e que eu faço até hoje com muita alegria. É uma coisa que me edifica”.

Maria Lúcia.

A guardiã da semente crioula narra que os ensinamentos do pai, que sempre guardou a semente tradicional, foi passado de geração a geração, sendo partilhado com a vizinhança e com as pessoas que tinham mais dificuldades. Ela afirma que a partir da invasão desse “desenvolvimento”, que foi uma enganação, muitos desses saberes e sementes estão morrendo e foi preciso fazer uma retomada. “Sementes são tesouros”, diz sobre a importância de preservar sementes nativas do Cerrado, compartilhar isso com as pessoas e outros guardiões da região do Alto Rio Pardo.

“A terra é uma dádiva de Deus, nosso lugar, nosso chão, nossa vida”

O desmatamento trabalha junto com a compactação do solo, com a atuação de venenos, adubos químicos, e a destruição da produtividade do solo e dos lençóis freáticos. Isso desnudou onde a água da chuva é captada pelo Cerrado para depois brotar nas nascentes das veredas, que estão em um lugar mais baixo. É o que a mestranda, Maria Lúcia, pontua sobre o resultado sentido nas comunidades de Rio Pardo de Minas, já que antes se tinha muita água e hoje o povo vive de caminhão pipa.

“Se você cortar uma planta de Eucalipto jovem, ela despeja como uma nascente dentro do balde. As plantas nativas não, elas são retorcidas, são aparentemente secas. Tem época do ano que elas fingem de morta para não tomar tanta água. O Eucalipto não, é verde o ano inteiro, florido, cheio de folhas verdes, e aquilo é só água que ele suga”, afirma a mestranda em sustentabilidade.

Nessa trajetória de luta, que é desgastante e muitas vezes rouba a esperança, a fé foi um de seus pilares. Em 2006, em meio a conflitos explosivos, como Maria Lúcia descreve, em que a pressão estava intensa ao perceber que poucos estavam interessados na defesa do território e as demandas para que a unidade de conservação não saia, recorreu, mais uma vez, à fé. E foi no livro de Ezequiel, sobre conquistas da terra prometida pelo povo Hebreu que a agricultora se fortaleceu e se inspirou para continuar lutando, mesmo tendo que enfrentar não só os empresários, mas também gente da própria comunidade que se deixavam enganar pelas estratégias do agronegócio. “Eram 30% da comunidade lutando e 70% contra nós, do lado dos empresários. Pensa numa situação? Às vezes, as piores ameaças de morte que nós sofremos foi aqui dentro da comunidade”. 

Em uma outra tentativa de invasão, a guardiã recorda, emocionada, a coragem das mulheres que enfrentaram policiais armados apenas com um terço de oração nas mãos. Uma lembrança da fé pela defesa dos direitos e do futuro da região. “As mulheres dependem da terra para o sustento, para aumentar a renda da família”, ressalta sobre o quanto as mulheres ao buscar proteger a família, o alimento, a água, acabam beneficiando toda a comunidade.

Comunidade pára as máquinas em uma das tentativas de desmatamento da região. Foto: Arquivo Pessoal. 

Sem recuo, fizeram até greve de sede e fome em Brasília para pressionar o governo, porque era o único meio de salvar o território da mão de mineradoras e grileiros.  “Já vamos morrer ou ter que mudar desse lugar. Vamos embora pra frente da presidente Dilma ver o que ela fala, nós vamos morrer lá em Brasília, se for o caso”.  Essa ousadia fez com que o Ministério do Meio Ambiente os recebesse. Foram 120 dias de reunião, discussão e planejamento em que Maria Lúcia esteve presente.

“O Cerrado ensina pela resistência. O Cerrado ensina a respeitar a vida, ensina fartura, sustentabilidade, respeito à vida, mesmo diante de tanto sofrimento”.

Maria Lúcia, guardiã do Cerrado Mineiro.

“A nossa história é muito grande”, diz em meio aos caminhos da memória que faz a agricultora se comover e se orgulhar de sua persistência. Hoje a região trabalha, na cooperativa, com 21 frutas do Cerrado e sua produção de polpa. Realizam constantemente projetos de restauração do bioma, construíram viveiros de muda para preservar cada diversidade de plantas e continuam gritando ao mundo sobre a importância de se ter o Cerrado de pé.

Arte em destaque: Júlia Barbosa | Edição: Renato Silva.

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