O novo cotidiano de corpos trans durante o período de distanciamento social da pandemia do novo coronavírus no Brasil

Enquanto o restante do mundo se preocupava com medidas que fossem reduzir ao máximo os números de novos casos e mortes, no Brasil, o presidente da república Jair Messias Bolsonaro, dava entrevistas que estigmatizava outras nacionalidades e reforçava de forma contrária ao restante do mundo a ideia de que o vírus não se passava de uma “gripezinha”. Já era sabido que ele nunca foi simpatizante da ciência e que desconhecia a sua importância,que aproveitou desse momento para protagonizar um show de irresponsabilidade e politicagem durante a pandemia, que a cada nascer do sol, tinha um número novo de casos confirmados e de vítimas fatais e se tornava uma das maiores crises mundiais.

Uma hora a conta da irresponsabilidade de um governo que mais se assemelha com um desgoverno chegaria, e chegou. Até a data de 08 de Novembro de 2020 foi registrado o número de mais de 162 mil mortes e de mais de 5.660.555 casos confirmados em todo território brasileiro. A somatória dos estados que compõem somente a Região Sudeste na mesma data trazia o número de 1.974.490 casos confirmados de infectados e de mais 73.752 mortes em função da Covid-19.

Mediante a ausência do governo as favelas começaram a experimentar a sua potência, com as articulações pensadas de dentro dela para um cuidado com ela. Organizações, coletivos e moradores se movimentaram para garantir que o mínimo que já não era comum, pudesse então, estar presente nessas regiões. A captação de equipamentos para proteção, o monitoramento do isolamento social, o combate ao sucateamento dos postos de saúde, tudo isso parecia estar fora dos planejamentos do governo. A pergunta que ficava no ar era quais eram as chances dessa população conseguir sobreviver diante de tantos fatores que pareciam empurrá-las para aqueles números expressivos de covas novas abertas. 

A incerteza passou  a se tornar a realidade da população brasileira, onde a sua maior parte não tem o hábito de fazer reservas financeiras. Não diferentemente de outras áreas, grandes, médios e pequenos empresários começaram a demitir seus respectivos funcionários em resposta ao isolamento social determinado por lei e que impossibilitava os serviços não essenciais a funcionarem. Em setembro a taxa de desemprego chegou a 14%, trazendo a tona o mais alto percentual desde o início da pandemia, de acordo com a edição mensal da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Covid-19, que foi divulgada em outubro pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) onde em agosto, a taxa era de 13,6%. 

A maior parte dos 14 milhões de desempregados na penúltima semana de setembro estava concentrada na Região Sudeste (6,3 milhões), que é a mais populosa do país. Ao longo dos últimos cinco meses, a região teve alta de 39,2% no número de desempregados, passando de 4,3 milhões para 6,3 milhões. Os números de dados são altos, mas quais são as opções direcionadas para corpos que poucas vezes durante suas respectivas trajetórias puderam se deparar com oportunidades que de fato representassem palpáveis oportunidades de ascensão social? 

E se dentro de uma escassez o pouco se tornasse nada, deixando assim as rotas de fugas quase nulas dentro de uma sociedade que pouco se preocupa em repercutir mais um dado para uma coletânea de tantos outros? No Rio de Janeiro a ONG Casinha Acolhida até o início da pandemia trabalhava com a proposta de oferecer acolhimento e apoio à população LGBTI+, em particular os expostos a situações extremas de vulnerabilidade e violações de direitos, vide corpos de mulheres transexuais, travestis e transgeneros.

Fundada em 2017, a Casinha além de focar no acolhimento baseado no desenvolvimento integral do indivíduo, agindo de forma objetiva que possibilite o desenvolvimento em múltiplas dimensões: física, intelectual, social, emocional e simbólica, a ONG sempre trabalhou em articulações entre empresas e corpos de pessoas transexuais, travestis e transgeneros na tentativa de possibilitar melhores condições de desenvolvimento social e acesso ao mercado de trabalho. 

“Com a pandemia, muito do que havia sido articulado foi interrompido, afinal, tivemos que lidar com a frustração de não ter mais vagas destinadas a esse público, sendo assim, a gente precisou se reinventar para garantir que o mínimo pudesse chegar para essas pessoas que estavam em nosso radar” conta Lorena Miguel, articuladora da ONG Casinha Acolhida.

A Casinha teve que direcionar seu foco de trabalho para uma questão que tomou um grau de urgência durante o período de isolamento social, afinal, o banco de dados que a organização tinha para a elaboração de novos currículos e capacitação para o mercado de trabalho, da noite pro dia se tornou a plataforma que garantiu a sobrevivência de corpos que sempre sofreram com a ausência do Estado na garantia de direitos, como por exemplo, a comida. Em 2020 através de 75 profissionais voluntários, centenas de jovens foram atendidos por cursos de qualificação, encaminhamento para instituições parceiras socioassistenciais (CRAS, CREAS, CAPS e outras), distribuição de cestas básicas durante a pandemia de coronavírus e muitas outras atividades.

Quando se fala sobre capacitação de determinados corpos para que esses mesmos corpos consigam ter acesso à outras oportunidades, subtende-se que o Estado está atento no combate de um aumento de uma desigualdade, mas a realidade é diferente e ONGs espalhadas pelo Brasil ficam estigmatizadas de que seus trabalhos devem e são para combater, ou melhor, tapar essas lacunas deixadas como principal característica dos governantes. 

Em Belo Horizonte um projeto chamado de Transvest foi idealizado para ser um curso pedagógico (Enem e Encceja) que desse conta de romper as barreiras de exclusão e garantir que o espaço também fosse um lugar de acolhimento, tendo como forte característica a diversidade de níveis sociais. Em um estudo lançado em outubro deste ano pelo Instituto Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior)  revelou que 858 mil alunos deixaram de cursar o ensino superior na rede particular este ano, após a pandemia. Uma redução que representa 13,2% das matrículas nas faculdades privadas do país. 608 mil alunos desistiram, trancaram a matrícula no 1º semestre do ano ou não se matricularam para o 2 semestre, 83 mil a mais que no mesmo período de 2019. O número total de 250 mil pessoas não ingressaram no 2º semestre de 2020 que apontou uma redução drástica em comparação com o ano passado, quando 1,2 milhão se matricularam para o ensino superior. 

Assim como nas escolas, universidades e cursos que são lugares com uma grande estrutura, com o início da pandemia as aulas do TransVest que eram presenciais precisaram ser canceladas por conta das medidas de isolamento que tinha como foco reduzir ao máximo a possibilidade de contágio do novo coronavírus. Então foi dado prioridade a elaboração de um projeto de renda mínima que atendesse esses corpos trans que estavam fora do mercado de trabalho ou para os corpos que trabalham com atividades sexuais, onde a baixa de consumo também foi representativa. 

“O período de adaptação não foi tarefa fácil, mas conseguimos garantir um valor de R$100,00 para 130 travestis. Também olhamos para os dados e como sabemos que a expectativa de um corpo trans  no Brasil é em torno de 35 anos, decidimos que mulheres trans e travestis a partir dessa idade seriam lidas como mulheres idosas e receberam um valor maior que as demais, no caso R$ 200,00” contou Vanessa Sander, antropóloga e professora de sociologia no projeto.

Assim como citado acima, a expectativa de vida de uma pessoa travesti ou transsexual no Brasil é de em média 35 anos, motivada por diversos fatores. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais, o nosso país foi o que mais assassinou a população trans nos últimos dez anos. Somente no ano passado, vítimas negras ou pardas representaram 82% da população trans assassinada no Brasil.

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é uma rede nacional que articula em todo o Brasil 127 instituições que desenvolvem ações para promoção da cidadania da população de travestis e transexuais, fundada no ano de 2000, na Cidade de Porto Alegre. Anualmente é feito um dossiê dos assassinatos e da violência contra pessoas trans no país, sendo tradicionalmente divulgado no mês de janeiro, mas devido ao aumento no número de casos de violências domésticas durante a pandemia, notou-se a necessidade de se fazer um boletim de forma semestral para divulgar os números que não aparecem nas divulgações oficiais do Governo. 

“Não dá pra pensar sobre a questão da empregabilidade sem pensar sobre o cissexismo, sobre a transfobia ou sobre a ausência de dados que revelam índices altíssimos de violências contra nossos corpos. Durante a pandemia tivemos que pensar em um novo formato de dossiês para dar conta dos números que só aumentaram nesse período. É triste demais saber que o Brasil pelo 12º consecutivo ocupa a primeira posição de países que mais mata pessoas trans e travestis” apontou Bruna Benevides, militar e secretária de articulação política na ANTRA.

Segundo dados publicados nos boletins bimestrais pela ANTRA, houve um aumento de 45% de casos de violência doméstica durante o período de pandemia. Esses boletins são feitos como forma de combater  a estrutura do transfeminicídio no país, afinal, os números que apontam as violências com esses corpos não são divulgados pelas secretarias estaduais. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destacou em 12 estados dos país um aumento de 22,2% entre março e abril deste ano, em comparação com o ano de 2019. Em estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo os números foram menores do que os números do ano passado, diferentemente de São Paulo que teve um aumento de 44,9% segundo o estudo.

Bastidores do FP

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