
O avanço de um golpe de Estado, em plena pandemia, reprime violentamente a população haitiana e retoma estratégias políticas utilizadas em um dos mais sangrentos períodos ditatoriais na América Latina: a dos Duvalier.
As ditaduras são as maiores feridas que os povos podem ter, pois a violência e o medo inundam as tentativas de existir e pensar em outra forma de vida que não seja a imposta. Falar disso no Haiti é falar dos Duvalier – François Duvalier e, após sua morte, seu sucessor, Jean-Claude Duvalier, ou Baby Doc – (1957-1986). De acordo com o sociólogo haitiano Gerad Pierre Charles, “A era Duvalier” impôs um novo sistema de acumulação de capital que levou à superexploração da classe trabalhadora e camponesa, e transformou o Haiti em um exportador de força de trabalho.
Com isso, no fim da ditadura, os Duvaliers roubaram entre 600 e 900 milhões de dólares americanos dos cofres públicos, como denuncia o escritor e sociólogo Laënnec Hurbon. Foram 29 anos de terror, o empobrecimento do país é uma das consequências daquele período com uma importante perda de recursos humanos e casos estrondosos de corrupção. Foram, também, 29 anos de luta e resistência que levaram ao fim da era Duvalier em 7 de fevereiro de 1986.
Para consolidar a jovem democracia que nasceu naquele ano, uma nova constituição foi elaborada e votada pela população em 29 de março de 1987, garantindo as liberdades públicas, assegurando a independência dos poderes executivo, legislativo e judiciário como forma de evitar um regime presidencialista como foi durante a ditadura.
No entanto, essa república soberana e democrática nunca foi completamente uma realidade. De 1986 aos dias atuais, o país enfrentou e enfrenta vários regimes autoritários, golpes de Estados, intervenção militar de outros países, corrupção, instabilidade e crises políticas que enfraquecem as principais instituições que são a base da democracia. É nesse contexto de instabilidade que estamos observando um retrocesso e a destruição deliberada das poucas conquistas democráticas obtidas depois de 1986.
O homem banana, sozinho na plantação

Jovenel Moïse, empresário que trabalhava no cultivo de banana para exportação, era conhecido como o “homem da banana”. Ele foi eleito presidente em 2016 com apenas 590 mil votos. Sua candidatura e mandato presidencial estiveram envolvidos em inúmeros escândalos de corrupção, sendo um dos maiores o desvio de recursos do Petrocaribe (3,8 bilhões de dólares). Sob o pretexto desta demanda, o povo haitiano mantém mobilizações permanentes desde 2018 que arrecadam múltiplas demandas.
O governo do Moïse tem atacado constantemente as instituições democráticas (o parlamento, o poder judiciário) e a liberdade de imprensa, sinais claros de que ele encabeça um regime cujo objetivo é ter um domínio total, reduzindo as liberdades públicas, sobretudo, o direito de protestar. Nos três últimos anos, todos os protestos contra o governo foram reprimidos violentamente pela polícia que se transformou em um grupo de repressão ao serviço do governo.
A inexistência do poder legislativo e a tentativa de mudar a constituição
Desde o dia 13 de janeiro de 2020, o país enfrenta uma grave crise institucional com um parlamento disfuncional por falta de eleições que o atual governo não organizou. Sem parlamento, não há nenhum controle sobre as despesas públicas e o presidente aproveitou para adotar uma série de decretos substituindo o trabalho do parlamento no que diz respeito à votação das leis, o que é claramente inconstitucional.
Além disso, um desses decretos criou um conselho independente que tem como tarefa mudar a constituição do país. Toda essa manobra prova que as eleições que não foram realizadas a tempo, fizeram parte de um plano para implementar, passo a passo, uma nova ditadura.
Durante a era dos Duvalier, constantemente eram organizados referendos para mudar a constituição e assegurar que os ditadores permanecessem no poder de forma vitalício. Naqueles tempos, os resultados eram sempre 100% de aprovação. Em consequência, a vigente constituição proibiu claramente qualquer mudança que seja através de referendos. Só dois terços da assembleia nacional (os deputados e os senadores) têm o poder de modificar a constituição com emendas constitucionais.
Contudo, o governo atual decidiu, de maneira unilateral, organizar um referendo em abril de 2021 para mudar completamente a Constituição. Algumas das grandes mudanças previstas nesta nova constituição, que está em elaboração, é eliminar o senado e dar ainda mais poder ao presidente.
7 de fevereiro de 2021 ou 2022?
O cenário da disputa atual gira em torno da interpretação do artigo 134-2 da Constituição no qual dita o tempo de mandato presidencial. Em 2015, foi realizada no país uma das eleições presidenciais mais fraudulentas da nossa história. Por conseguinte, essas eleições foram anuladas. Novas eleições foram organizadas em 2016 e Jovenel Moïse foi eleito e tomou posse em 7 de fevereiro de 2017. Daí, surgiu uma grande controvérsia.

Segundo o artigo 134-2 da Constituição, mesmo que as eleições fossem anuladas em 2015, o mandato do presidente começou em 2016, após o anúncio das eleições. Baseando-se na interpretação desse artigo, a sociedade civil e a oposição política exigiu que o presidente deixasse o poder no dia 7 de fevereiro de 2021, que é a data do fim de seu mandato constitucional, que são cinco anos.
Além de ficar no poder, assegurando que o mandato termine somente em em 2022, Moïse atacou o poder judiciário mandando prender um juiz do Supremo Tribunal de Justiça. Nisso, de acordo com alguns membros do governo, o juiz e mais 22 pessoas também foram presas acusadas de tentativa de golpe de Estado e atentado à segurança do Estado. Um pretexto que a ditadura dos Duvalier costumava usar para prender, torturar e massacrar seus opositores.
A resistência popular
Nessa conjuntura, em 14 de fevereiro de 2021, milhares de haitianos tomaram as ruas de Porto-Príncipe, para manifestar contra a volta da ditadura, como um gesto de amor ao país e à democracia. Desde aquela data até hoje, acontecem numerosos protestos que não apenas denunciam a ditadura, mas também a estratégia de violência, miséria e terror que o povo está enfrentando todos os dias.

Imagem em destaque: Getty Images/via BBC.
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