
Na pandemia da Covid-19, o Valle del Chota, uma região do Equador povoada majoritariamente por afrodescendentes, vive um abandono histórico que, no pico da emergência sanitária, se tornou ainda mais evidente.
Guayaquil tem sido a cidade do Equador mais afetada pela Covid-19 e Quito (capital do Equador) a que mais houve contágios. Essas duas maiores cidades do país concentraram, sem dúvidas, a maior quantidade de casos. Porém, isto fez com que a atenção e os recursos se voltassem mais aos centros urbanos e se esquecessem das zonas mais remotas. Uma delas é o Valle del Chota.
Esta região andina do norte do Equador está a cerca de 1.500 metros acima do nível do mar e se estende entre as províncias de Carchi e Imbabura. É habitada, principalmente, por comunidades afrodescendentes. Sua população ficou escassa aos cuidados médicos e estatais mesmo antes da pandemia. Durante a emergência sanitária, foram tomadas decisões que hoje são classificadas como racistas por seus moradores e gestores.
Juan García, presidente da comunidade de Ambuquí – uma das várias em cantón Ibarra – afirma que uma das primeiras medidas tomadas nas comunidades afrodescendentes de Imbabura e Carchi foi fechar a estrada que liga o Valle del Chota ao cantón Ibarra. O objetivo da medida, do Município de Ibarra, era estabelecer cercas epidemiológicas para prevenir infecções massivas.
No entanto, a decisão restringe o acesso ao direito à saúde. No Valle del Chota e na bacia do rio Mira existem apenas estabelecimentos médicos de atenção primária, como postos de saúde, centros de saúde tipo A (que conta com serviços básicos, médico geral, odontólogo e psicólogo) e apenas dois centros médicos tipo B (serviços de emergência e enfermaria). Os hospitais encontram-se na cidade de Ibarra. Na província de Carchi, o hospital mais próximo fica em San Gabriel, a uma hora do Valle del Chota. Chegar remédios, equipamentos de proteção e exames diagnósticos a esses postos de saúde durante a emergência seria uma odisséia. Os postos de saúde do Valle, antes mesmo da pandemia, não tinha garantias de poder enfrentar outros tipos de emergências, como erupções cutâneas na pele, pela contaminação da água que se consome, ou atendimento a hipertensos ou diabéticos.
A Dra. Nathalie Mosquera, responsável pelo posto de saúde comunitário de Pusir Grande – na província de Carchi – disse que para cada comunidade da zona, o Ministério da Saúde enviou, desde o início da pandemia, apenas 100 testes rápidos, 50 PCR (testes moleculares recomendados para detecção de covid-19) e 20 recipientes estéreis para teste de escarro. Porém, somente entre as comunidades pertencentes a zona de Bolívar, na província de Carchi, que pertencente ao Valle, a população chega a 10.000 habitantes. García concorda com este dado e diz que fica impossível saber como e quantos foram contaminados: se eram grandes quantidades ou não, e se os pacientes eram assintomáticos, porque o número dos exames realizados são insuficientes.
Cristofer Delgado, um jovem da comunidade de Carpuela, na província de Imbabura, foi um dos residentes diagnosticados por um teste rápido. “Eles me deram um teste rápido e deu positivo, o resultado gerou um choque emocional em mim por tudo o que estava acontecendo, e pelo medo de morrer. A notícia do meu contágio se espalhou como um incêndio na área e não faltaram rumores e discriminação. Meus dados médicos foram violados e expostos a toda a comunidade onde moro”, diz o jovem de 28 anos.
Após oito dias, Cristofer Delgado realizou um teste de PCR e deu negativo. A Organização Mundial da Saúde disse, em abril de 2020, que os testes rápidos não deveriam ser usados como um diagnóstico de Covid-19. O Ministério da Saúde equatoriano acatou a recomendação em documento, no mesmo mês, dizendo que os testes moleculares de PCR devem, então, ser a preferência. O tempo decorrido entre o teste rápido e a PCR pode significar que Cristofer Delgado já não tinha vestígios do vírus no corpo, ou nunca o teve. Sem certezas do que aconteceu, oito meses depois o jovem se pergunta se foi um falso positivo e, se foi, quantos outros falsos positivos existiram e ainda estão ocorrendo na área? “E quem vai reparar o dano moral que me causaram divulgando minhas informações?”, questiona.
A doutora Mosquera já trabalhou em alguns centros médicos da região e diz que a falta de suprimentos para enfrentar a pandemia não é o único problema. Ela diz que nas comunidades existe uma lacuna significativa no acesso a cuidados médicos, bem como a outros serviços. “Eles não têm água potável. Não tem água 24 horas por dia. Não existe medicamento para tratar adequadamente a população vulnerável, e o lixo das grandes cidades é depositado nos rios onde se consome a água”, afirma.
No Valle del Chota está o aterro San Alfonso, localizado na freguesia de Ambuquí, que há 10 anos recebe os resíduos gerados pela cidade de Ibarra, capital da província de Imbabura. São cerca de 150 toneladas por dia depositados nesse aterro sanitário. Os membros da comunidade e moradores desta área dizem que o aterro tornou-se um poço de infecção devido à presença de ratos, urubus e ao mau cheiro.
Em 3 de setembro de 2020, a prefeita do cantão de Ibarra, Andrea Sacco, visitou o aterro, que fica próximo a várias cidades afro-americanas, para verificar a gestão dos resíduos, e encontrou uma multidão de pessoas da comunidade que não só reclamaram do lixão e sua contaminação, mas também da falta de serviços básicos. A pandemia da covid-19 intensificou os problemas, e a falta de água potável, de hospitais na comunidade e de tratamento de esgoto se tornou evidente.
A maior reclamação dos moradores era que naquele aterro, onde chega o lixo de Ibarra, também começou a chegar o lixo hospitalar de pessoas infectadas com a covid-19. Porém, no dia em que os moradores reclamaram pessoalmente com a prefeita, esta se defendeu dizendo que o aterro sanitário tem todas as licenças ambientais.
A doutora Mosquera lista todos esses problemas e deficiências, e explica que é impossível que a campanha do Ministério da Saúde, para evitar o contágio da covid-19, tenha funcionado no Valle del Chota porque nem mesmo os problemas de acesso aos serviços básicos nessas comunidades foram resolvidos.
O abandono histórico
Em meados do século XVII, a Companhia de Jesus, uma das ordens católicas mais poderosas do mundo, trouxe suas vastas propriedades para o Valle del Chota – antes nomeado pelos fazendeiros escravistas como coangue de muerto. Depois das reformas libertárias passou a se chamar Valle del Chota para ressignificar sua legitimidade ancestral – em que centenas de escravizados africanos trabalhavam a terra. A doença e o rigor das mitas – sistema de trabalho forçado inventado pelos incas, mas adotado pelos conquistadores espanhóis – quase exterminou a população indígena que trabalhava nesses campos. Para repor sua força de trabalho, pessoas escravizadas vindas da África foram levadas para o Valle.
Centenas de anos depois, o Valle del Chota é atualmente constituído por mais de 39 comunidades que vivem nas margens do rio Chota e do Rio Mira. 7,2% da população equatoriana é afrodescendente – desses 4,11% vivem no território ancestral do Valle del Chota. Essas comunidades vivem um abandono histórico que as levam a ter as maiores taxas de pobreza no Equador: 68,6% de pobreza e 34,7% de extrema pobreza, de acordo com o censo de 2010 do Instituto Nacional de Estadística y Censos (INEC).
As poucas vezes que o Equador se voltou para o Valle del Chota foi para comemorar os grandes jogadores de futebol que viveram ali – no qual, entre outras grandes conquistas esportivas, fizeram parte da equipe que levou o país a uma Copa do Mundo pela primeira vez em 2002. As outras vezes que a atenção se voltou para o Valle foi para falar das indústrias ilegais que, na falta de outras oportunidades para sair da pobreza, tem permeado as comunidades de Chota – uma operação contra a mineração ilegal em Mascarilla em 2018 deixou um morto, Andrés Padilla, executado a tiros por um policial. Fora isso, o vale permanece esquecido pelas autoridades nacionais e locais das províncias de Imbabura e Carchi, às quais pertencem tecnicamente como comunidades rurais.
Durante a pandemia da covid-19, o abandono sistemático fez com que os habitantes das comunidades Chota tivessem menos acesso a serviços básicos de saúde, testes de diagnóstico de coronavírus e ajuda das autoridades.
A falta de informação
Os primeiros contágios na província de Imbabura ocorreram na cidade de Ibarra e logo se espalharam para as comunidades negras cuja população, provavelmente, foi infectada quando viajava e trabalhava em Ibarra – infelizmente não se tem dados, já que o acesso a testes e postos de saúde são escassos. No entanto, publicações da mídia local e nacional pontuaram que as contaminações ocorreram pela desordem social da área, classificada, por muitos meios de comunicação, como conflituosa. Para obter mais informações sobre isso, solicitamos insistentemente uma entrevista com a prefeita de Ibarra, mas, após várias promessas de sua equipe de comunicação de que a conversa iria acontecer, declinaram do convite.
Em 15 de julho de 2020, a prefeita de Ibarra, Andrea Sacco, em um comunicado público, anunciou que havia contraído o vírus durante uma visita de campo a organizações de ajuda humanitária no Valle. A mídia local da cidade de Ibarra rapidamente replicou essas declarações. A fala de Sacco incomodou os moradores das comunidades, que exigiram um pedido público de desculpas. Mas essas desculpas nunca aconteceram.
Os habitantes do Valle del Chota não confiam nas autoridades e essa desconfiança cresceu durante a pandemia. Na ausência de cuidados adequados, vários moradores da área recorrem a mecanismos ancestrais para tratar a covid-19, como tomar uma aguardente tradicional, uma mistura com gengibre que, acreditam, combater enfermidades e, assim, fortalecer as defesas.
Juan García, presidente da comunidade de Ambuquí afirma que os dados epidemiológicos apresentados pelo Ministério da Saúde e a publicação nas páginas oficiais dos óbitos de covid-19 no Valle del Chota não coincidem com os casos que ele conhece.
Nas 11 comunidades que coordena, houve casos em que as pessoas foram diagnosticadas com outras doenças nos postos de saúde e quando recorriam aos hospitais, morriam. As certidões de óbito, segundo García, também são inconsistentes porque “quem chegava ao hospital com alguma enfermidade era classificado de cara como coronavírus, sem nenhuma verificação”.
Nessas circunstâncias, a falta de informação, testes e atenção à saúde têm feito as comunidades vivenciarem a pandemia em um ciclo pernicioso, sem acesso à prevenção e evidências claras para determinar os níveis de contágio que sofreram. Junto a isso, autoridades locais e setoriais ainda os acusam de falhas que somente seriam evitadas se tivessem tudo o que historicamente lhes foi negado.
*Imagem em destaque: Alexandra León.
Tradução para o português: Ludmila Almeida.
Matéria publicada originalmente em espanhol pelo site GK.