Entenda como os cuidados com o câncer de mama também devem estar presentes na vida de homens e mulheres trans 

Uma a cada oito mulheres podem desenvolver câncer de mama, além disso a estimativa é que em 2020 o número de novos casos supere 66 mil no Brasil, segundo o Instituto Nacional do Câncer. Com dados cada vez mais alarmantes, o mês de Outubro é marcado por uma campanha de prevenção ostensiva, mas que é frequentemente atrelada ao público feminino cisgenero e que não engloba a população LGBTQIA+. 

De acordo com um estudo publicado pelo The BMJ, jornal de medicina do Reino Unido, o risco de desenvolvimento de câncer de mama em mulheres transexuais que fizeram tratamento hormonal por em média 18 anos, é 46 vezes maior do que em homens cis, que possuem 1% de chance de desenvolverem a doença. Apesar disso, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e Bianca Lopes, técnica de referência para Políticas Públicas de Saúde Para População LGBTI+ da Secretaria de Saúde do estado de Goiás, afirmam que no Brasil não é feito nenhum levantamento ou notificação por parte do Estado de quantas mulheres e homens transexuais são acometidos pela doença no país.

Sem uma notificação de dados, Bianca conta que trabalha na quebra dos preconceitos e tenta inserir a população trans no contexto de cada campanha de prevenção. Seja no Outubro Rosa, Novembro Azul ou Setembro Amarelo, ela busca fazer com que profissionais da área também olhem as especificidades em saúde da população trans e LGBT+, dessa forma, contemplando mulheres trans, por exemplo, tanto no mês de outubro quanto em novembro.

Porém, para Bianca a falta de dados ainda é um desafio para se pensar a prevenção de doenças de forma estratégica. “Por mais que exista uma política de saúde que garanta que essa população tenha direito, nós ainda temos muitas dificuldades pois os sistemas de informação do Sistema Único de Saúde (SUS) não contemplam a diversidade. A notificação do SUS é feita somente por meio do sexo anatômico, impossibilitando que pessoas trans sejam mapeadas e dificultando o planejamento de medidas extramamente importantes de intervenção para a comunidade”. 

Glauber Leitão, médico oncologista clínico e chefe da unidade de oncologia e hematologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), concorda que a terapia hormonal pode aumentar a possibilidade de mulheres trans desenvolverem câncer de mama, mas o oncologista alerta que essa afirmação é feita a partir de pesquisas que são realizadas somente no exterior e de maneira retrospectiva, ou seja, que não estudam quais são as possibilidades de saúde para a população trans. “Com uma lacuna de pesquisas sobre o caso, o consenso médico é de que a mamografia e o acompanhamento de mulheres e homens trans também seja rotineiro para que haja uma detecção precoce do câncer, principalmente a população que se submete ou submeteu a reposição hormonal”.

O oncologista afirma que o rastreamento mamográfico deve ser feito a partir dos 40 anos de idade e que homens trans, mesmo aqueles que já fizeram a mastectomia, não podem deixar de realizar o acompanhamento médico, principalmente nos casos que a cirurgia ainda deixa tecido mamário. Em relação ao uso de hormônios e o diagnóstico da doença, Glauber ressalta: “Cada caso é um caso, mas no geral quando o câncer é do tipo hormoniossensíveis, que tem relação desse tumor com receptores hormonais. A recomendação hoje é que haja uma suspensão dessa terapia hormonal e se foque no tratamento do câncer. Depois de realizado o tratamento, outras medidas serão tomadas”.

A prevenção é importante, mas a transfobia é um obstáculo 

De janeiro a agosto de 2020, 129 trans foram assassinados no Brasil, como afirma a ANTRA em seu 4º Boletim de Assassinatos de Travestis e Transexuais Brasileiras. No país que mais mata pessoas trans no mundo, a transfobia também se apresenta através de violências morais e psicológicas e, apesar de a prevenção ao câncer de mama ser considerada importante para a população trans e o acesso à saúde ser garantido pela Constituição Brasileira, a discriminação no sistema de saúde se torna um obstáculo. MaxSuellen Duarte conta que atualmente não faz nenhum tipo de rastreamento mamográfico e que a falta de informação e representatividade nas campanhas, além do despreparo no atendimento médico fazem com que ela não procure ter um acompanhamento. “O Ministério da Saúde deveria se engajar mais e expandir a campanha para todas as mulheres, indenpendente se elas sejam cis ou trans. Além disso, às vezes a gente ainda tem que lidar com o atendimento médico que é conturbado, pois a maioria dos profissionais de saúde ainda não conhecem o nosso corpo e não tratam a gente pelo nome social”. 

João Hugo, coordenador da Casa Aurora – Centro de Cultura e Acolhimento LGBTQIA+ em Salvador, diz que na teoria a prevenção e o cuidado é um direito de todos, mas que sabe que isso não é uma realidade. “Eu já sou mastectomizado e o exame mamográfico ocorre sempre nas minhas consultas ginecológicas, mas eu sei que eu, João, sou privilegiado quanto a isso. Eu tenho uma profissional que me atende muito bem, mas isso não é uma realidade para muitos amigos que sofrem com a discriminação no atendimento”. Sobre as campanhas, João ainda completa: “A cisgeneridade está posta, mas temos que mostrar que existem outros corpos para além dos homens e mulheres cis e que eles também precisam desse cuidado”.  

Live ‘Outubro Rosa e população Trans’: Sellena Ramos conversou sobre o “Outubro de todas as cores”

Na última sexta-feira, 23, o Favela em Pauta realizou uma live, através do seu perfil no Instagram, para abordar a importância do Outubro para além da perspectiva cis. A live contou com a participação da Sellena Ramos, graduanda em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e uma das coordenadoras da Casa Aurora.

Durante a entrevista, Sellena ressaltou a necessidade de o SUS pensar um atendimento humanizado para a população trans e contou como tem ocorrido o acompanhamento médico em meio à pandemia do coronavírus.”Geralmente, esses espaços de saúde são locais que nós evitamos frequentar por causa da transfobia institucionalizada e com a pandemia tudo isso se agravou ainda mais. Além do medo da contaminação do vírus, nós também ficamos apreensivas com as formas de tratamento que teremos ali e, por isso, muitas pessoas trans que eu conheço estão buscando ajuda quando já estão em estado grave de saúde. A gente precisa realmente investir em políticas de conscientização para atrair essas pessoas para o sistema de saúde, viabilizar esse outubro de todas as cores e uma metodologia que não seja excludente, mas sim inclusiva e qualificada”. 

*O texto é de autoria das repórteres Ariel Bentes, Dandara Franco, Eduarda Nunes e Ludmila Almeida

*Arte em destaque: Lethícia Amâncio

Bastidores do FP

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