
Reconhecer a existência de pessoas negras surdas é dialogar com outras vivências sociais que precisam ser respeitadas e pautadas já no ensino básico.
A existência de pessoas surdas no mundo é tão antiga quanto a humanidade. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), a população classificada com deficiência auditiva, era de quase 10 milhões de pessoas no último censo. Destas, cerca de quase 5 milhões são negras (pretas e pardas). Confrontando esses dados de forma interseccional, isto é, levando em consideração as marcações de raça, surdez e território, identificamos que, a maior parte dessa população negra surda, está localizada nas regiões centro-oeste, norte e nordeste. Nesta última região, chegando à quantidade de quase 70% dessa população. A qual é a mais afetada pela pobreza, resultante da usurpação e exploração histórica.
A partir disso, é preciso entender que, no Brasil e no mundo, a história, as políticas linguísticas e educacionais das pessoas surdas são marcadas pelo não reconhecimento de seus direitos e de sua humanidade, e pela subalternização e apagamento de seus corpos. Muitas das práticas de ensino do oralismo – que parte da língua falada –, por exemplo, aconteciam de forma violenta e opressora.
Boa parte das práticas de ensino do oralismo ganharam força após o famoso Congresso de Milão, em 1880. Ao definir que as metodologias de ensino orais deveriam ser usadas também na educação de pessoas surdas, ao mesmo tempo que proibia o uso das línguas de sinais. Em uma violenta relação de poder, no mundo todo, surdos/as tinham suas mãos amarradas nas escolas, para que não utilizassem língua de sinais, na busca incessante de que elas deveriam falar/oralizar para se tornarem “normais”.
No Brasil, em seu retrocesso histórico, o método oralista só cai em desuso em meados dos anos de 1970, dando lugar ao método de Comunicação Total, em que se usava tanto o ensino oral como o apoio das línguas de sinais. Posteriormente, por volta de 1986, surge o bilinguismo, o ensino simultâneo da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e da Língua Portuguesa.
A Libras é reconhecida por lei no Brasil desde 2002. E desde de 2016, se encontra na Lei Brasileira de Inclusão (LBI) que promove mudanças em diversas áreas como educação, saúde, mobilidade, trabalho, cultura e acesso a informação. Além disso, é uma língua com estrutura gramatical própria e que não é universal, isto é, cada localidade tem a sua organização linguística de sinais.
Embora hoje as políticas linguísticas e educacionais trazidas pelo bilinguismo sejam de grande ganho para a população surda, ainda se percebe no Brasil a necessidade de uma articulação mais eficiente na educação de pessoas surdas. O ensino de língua portuguesa, por exemplo, ainda continua a ser imposto como primeira língua. Desta forma, é importante ressaltar que, para pessoas surdas, a língua de sinais é a primeira, e o português, portanto, deve ser ensinado como segunda língua.
Ainda, para além das práticas educacionais, os olhares clínicos sobre esses corpos são mantidos até hoje, e muitas das vezes impedem que pessoas surdas possam ter a aquisição de linguagem na infância, o que pode causar inúmeros prejuízos na formação de sua subjetividade. Para pessoas negras surdas, além das implicações linguísticas, essa demora para construção de suas subjetividades, resulta também em um reconhecimento tardio do pertencimento racial e étnico.
Para pessoas negras surdas, as práticas racistas são opressoras e violentam os seus corpos de inúmeras formas e todas têm o mesmo intuito de desumanizar e exterminar a existência da população negra. Por isso, pensar o corpo “negro-surdo”, interseccionalmente, com suas vivências de sexualidade e de gênero, é enxergar a colisão das estruturas de cultura, de linguagem, de identidade, raça/cor, gênero, classe e outros aspectos de classificação social.
Essas opressões e marginalizações dos corpos de pessoas negras surdas, ocorrem pelas colisões criadas pelo racismo estrutural, do capitalismo globalizado e se reverberam nas instituições do Estado, impedindo que pessoas negras surdas adentrem os espaços de poder, regidos pelo racismo e pelo monolinguismo – a única língua – do português brasileiro.

A importância da interseccionalidade para discutir surdez no Brasil
Nos últimos anos o termo “interseccionalidade” passou a ser adotado e usado por diversas pessoas, sejam elas, intelectuais dos movimentos sociais, acadêmicas, influenciadoras, entre outras. Mas de fato, o que é interseccionalidade?
Antes de tudo, para responder a essa pergunta, precisamos entender e enxergar as estruturas que nos rodeiam, que são construtos da nossa sociedade. De acordo com o texto “Colonialidade do poder e classificação social”, do sociólogo peruano Aníbal Quijano, a expansão da colonização ocorreu, em um primeiro momento, com o surgimento do colonialismo como estrutura de dominação, que se beneficia do comando dos recursos de produção, do controle da política e do trabalho de uma população, a fim de controlar outros povos que diferem dos padrões europeus.
Depois disso, surge então a colonialidade, que transforma esses recursos de produção, comando e capital no capitalismo, fazendo dele um sistema mundial de economia e controle. Mas, para a sustentação e manutenção desse sistema, o capitalismo utilizou-se da dominação e exploração/invasão de territórios, apropriando-se de tudo aquilo que fizesse parte da natureza, como os recursos, os povos, os saberes e os corpos. Assim, a exploração dos corpos – e suas marcações sociais de gênero, sexo, sexualidade e raça – são estruturantes da colonialidade pela imposição de uma hierarquização/classificação étnica e racial a partir do homem europeu que passa a operar em todas as dimensões e planos da nossa sociedade.
Foram criadas pela colonialidade, maneiras de organizar o mundo, pensadas para construir e conservar os binarismos, como homem/mulher, branco/negro, rico/pobre. É importante perceber que essa lógica binária se mantém na relação de oposição entre ouvinte e surdo/a, ou seja, aquele/a que não ouve e não fala é colocado em uma condição inferior.
A esse ponto, você deve estar se perguntando, cadê o significado da tal palavra interseccionalidade? Pois bem, ao entender também que, gênero/sexualidade e raça/cor são as principais marcas usadas para diferenciar quem é a referência padrão de pessoa e quem não é, podemos dizer que aqueles aspectos são indissociáveis um do outro. Essa indissociabilidade entre essas marcas é entendida como interseccionalidade, isso por considerar que elas são inter-relacionadas. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar as várias inter-relações do nosso mundo.
E o mais importante é que passamos a perceber o que faz a interseccionalidade e não o que ela é. Defendo que o corpo é uma unidade e uma totalidade, e as marcas sociais atuam em conjunto, isto é, atuam interseccionalmente no sentido que ser negro/negra já é uma experiência social, mas ser negro/negra surda direciona tal corpo a outra experiência em sociedade e a outros enfrentamentos.

Foto: Andrey Popov.
A partir deste entendimento, a interseccionalidade serve para perceber que as opressões sofridas por pessoas negras surdas, estão historicamente ligadas à falta de acesso aos direitos linguísticos e existenciais dessas pessoas. Ainda, relaciono isso com as vivências de gênero e sexualidade dessa população, por defender que o corpo possui, em um só tempo, todas as intersecções.
Por fim, precisamos refletir sobre essas construções dos mecanismos de colonização dos corpos, lembrando que todas as intersecções são inter-relacionadas, e assim possamos promover discussões que abarquem a maior gama de diferenças que constituem as pessoas. Para isso, cito aqui, alguns nomes de pessoas negras surdas, influenciadoras digitais, como: Rose Lopes, Sandro Santos, Priscilla Leonnor, Edinho Poesia e Leonardo Castilho.
Ícaro Augusto Santos é professor de Libras. Intérprete de Libras e Português na Associação das Mulheres Deficientes Auditivas e Surdas de Goiás (AMDAS). Idealizador da equipe de Intérpretes de Libras: Mãos em Grupo. Pesquisador das relações étnico-raciais, com foco na comunidade surda brasileira e membro do Obiah – Grupo de Estudos Interculturais Decoloniais da Linguagem e também do Alaye – Laboratório de Pesquisa em Informação Antirracista e Sujeitos Informacionais.
*Edição: Renato Silva e Ludmila Almeida.
Imagem em destaque: Andrey Popov.
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