
Repensar alimentação e buscar autonomia alimentar é um ato político para o povo periférico
A população negra representa 75,5% dos homicídios ocorridos no Brasil em 2017, segundo o Atlas da Violência de 2019. Porém, ela não morre somente através da bala. De acordo com o Ministério da Saúde, doenças crônicas como anemia falciforme e diabetes tipo II acometem mais pessoas negras do que brancas. A anemia está presente de 2% a 6% na população branca contra uma variação de 6% a 10% entre indivíduos negros, já a diabete atinge 9% a mais os homens e 50% a mais as mulheres negras em relação a pessoas brancas.
Quando se observa a questão da obesidade, a situação não é diferente. Segundo a Vigitel Brasil – População Negra 2018, pesquisa realizada pelo Ministério, a taxa de mulheres negras com obesidade é de 21,8% contra 19,6% de mulheres brancas. Além disso, as análises apontam que Manaus é a capital do país com maior frequência de adultos obesos (23,4%), sendo também a segunda capital com maior população preta na região Norte.
Ainda baseada na pesquisa Vigitel, em 2018 o consumo regular de frutas e hortaliças foi de apenas 20,1% entre a população preta e o consumo de refrigerantes em cinco dias da semana foi de 14,4%, sendo mais elevada entre homens adultos, com 17,7%, do que entre mulheres com 11,4%.
Marcela Lisboa, jornalista e moradora do Complexo da Penha, favela do Rio de Janeiro, resolveu repensar sua prática de alimentação. Desde então, suas escolhas são focadas em folhas verdes, deixando de lado coisas como salsicha, nuggets e açúcar. “São inúmeros os casos de diabetes, hipertensão e infartos na população preta. Isso tem a ver com contexto histórico de escravidão, mas também com práticas de inserção na lógica capitalista. Afinal de contas, oferecer uma Coca-Cola para a visita ou comer carne todos os dias ainda é sinal de fartura” ressalta.
Pensar alimentação saudável de acordo com cada realidade
Apesar desses dados, a nutricionista Ana Santos afirma que alimentação saudável é um direito assegurado pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, porém o desenvolvimento da obesidade e das doenças crônicas dentro da população preta e periférica é crescente, e é uma das principais causas de mortalidade. Por isso, a nutricionista aponta a necessidade de se repensar uma alimentação saudável, de acordo com a realidade de cada comunidade, aliada à atividade física como principais formas de combate a doenças crônicas não transmissíveis.
Para Suellen Campos, nutricionista da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e doutoranda na linha de pesquisa de epidemiologia, políticas e práticas de saúde e populações, quando se tem um povo menos favorecido de direitos é preciso pensar em segurança nutricional. Isto é, uma alimentação equilibrada mediante uma quantidade suficiente para alimentar aquela família, aliada a uma variedade de alimentos que atenda uma demanda biológica do organismo, sempre visando um menor consumo de alimentos processados.
A nutricionista também aconselha a optar pelo enriquecimento de preparações, adicionando no arroz, por exemplo, legumes e vegetais fazendo com que o alimento renda e fique ainda mais rico de nutrientes. “Geralmente carnes são mais caras e uma opção é adicionar legumes refogados. Outro ponto é usar mais proteínas de origem vegetal, podemos usar lentilha, soja e o próprio ovo, que é de origem animal mas tem um valor mais em conta”.
O reaproveitamento integral dos alimentos também é uma opção saudável e acessível. A prática evita o desperdício alimentício e amplia a produção culinária utilizando talos, cascas e folhas que antes eram jogadas no lixo. Além disso, Ana Santos aponta que também é preciso que a comunidade atue coletivamente reivindicando a venda de alimentos com valor reduzido e a criação de cozinhas comunitárias em seu bairro.
Morrer de Covid-19 ou morrer de fome?
O risco de morrer por Covid-19 no Brasil têm perfil arquitetado: população negra e pobre. Como ficar em casa enquanto não se tem o que comer e nem dinheiro para pagar as contas?
“Temos muitas pessoas trabalhando como empregada doméstica, vendedores ambulantes e com a saída da população da rua essas pessoas perderam a sua renda e isso gera, dentre muitos problemas, a dificuldade no acesso do alimento.” pontua Suellen Campos. E reitera, “outro problema é que as crianças comiam nas escolas e às vezes ali era sua principal refeição, então nós temos em casa um aumento do custo com a alimentação, já que essas crianças agora passam a comer mais uma vez em casa também.”
Conforme a Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ano 2017 e 2018, 73,9% dos domicílios que tem insegurança alimentar grave são compostos por pessoas negras. “A insegurança grave aparece quando os moradores passaram por privação severa no consumo de alimentos, podendo chegar à fome” como destaca a agência de notícias do IBGE.
O Brasil é um país com grandes taxas de morte por fome. Conforme mostra o DataSus, só entre 2008 e 2017, houve registro de 63.712 óbitos por complicações decorrentes da desnutrição. Segundo o IBGE mais de 10 milhões de pessoas passam fome no Brasil; 6,5 milhões de crianças com até cinco anos tem alguma restrição alimentar e as regiões norte e nordeste são as mais vulneráveis à insegurança alimentar. Com a pandemia esses números tendem a ficar piores. O IBGE ainda aponta que a insegurança alimentar grave atinge ainda mais os lares chefiados por mulheres negras, sendo que 63% desses vivem abaixo da linha da pobreza.
A estimativa do Banco Mundial é que cerca de 5,4 milhões de brasileiros atinjam a extrema pobreza, chegando ao total de 14,7 milhões de pessoas até o fim de 2020, o que significa 7% da população. Isso evidencia que o acesso à alimentação de qualidade é impedido à população periférica, negra e empobrecida, pois R$600, do auxílio emergencial, não é suficiente para garantir um isolamento social digno diante do aumento dos preços de itens básicos de uma refeição.
Comida de verdade exige a garantia da autonomia alimentar
Nossa ideia comum de alimentação parte de forças políticas que mobilizam tal prática, isso envolve saúde, mas também envolve economia, cultura, meio ambiente, autonomia de poder plantar o alimento e até quem pode ter um tempo para cozinhar a sua própria comida, algo barrado às trabalhadoras e trabalhadores que geralmente tem apenas 1 hora de almoço, pontua Kellen Vieira, Cientista Política e integrante da Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Redessan). “A alimentação não começa no mercado, ela começa da terra. Então se o povo negro não tem acesso à terra, a gente já tá começando por aí a nossa insegurança alimentar” destaca.
Para Chico Pintor, direção estadual do MST Goiás, a comida de verdade é um direito, é garantia de alimento sem veneno, é saber o que se come e qual a procedência, é ter a consciência de um processo milenar que contraria, principalmente, a lógica da cadeia industrial alimentícia, extremamente violenta e que unifica o nosso modo de comer.
Kellen ainda nos convida a buscar pelos grupos de consumo, realizados pelo MST em cada região, das feiras virtuais e locais, que vendem alimentos de verdade por preços acessíveis e ainda promovem a circulação da economia pela comunidade. “Minha meta de vida é nunca mais pisar no mercado” enfatiza.

Pela soberania, segurança e autonomia alimentar, vários grupos, coletivos e movimentos reivindicaram no Dia Mundial da Alimentação (16 de outubro) a retomada do direito de “Alimentar a esperança para alimentar as pessoas”, como afirma o manifesto contra a fome e pelo direito de se alimentar bem.
*O texto é de autoria das repórteres Ariel Bentes e Ludmila Almeida
*Foto em destaque: Ludmila Almeida
Você precisa fazer login para comentar.