[vc_row][vc_column][vc_column_text]O Favela em Pauta é resultado da experiência de três jornalistas do Rio na cobertura dos impactos das Olimpíadas de 2016 nas favelas da cidade para o jornal britânico The Guardian. De longe dos eventos esportivos, Michel Silva (Rocinha), Daiene Mendes (Complexo do Alemão) e Thais Cavalcanti (Complexo da Maré) mostraram de dentro de suas favelas uma outra realidade. O projeto foi encerrado em 2017 e, em seguida, foi criado o Favela em Pauta para continuarmos a produzir conteúdos sobre os territórios.

Enquanto remoções, tiroteios, invasão de casas e atrocidades aconteciam nas favelas, as empresas de comunicação – chamadas de mídia tradicional – difundiam a ‘alegria do progresso’ na cidade maravilhosa. Um cenário perfeito para a “autorização” de violar os direitos mais básicos, das populações e grupos mais vulneráveis, a quem o jornalismo brasileiro deveria estar à serviço.

A favela sempre esteve em pauta, e a posição da câmera, de fora para dentro, limita-se a registrar o olhar de quem entra. Mas quem olha a favela nem sempre enxerga suas complexidades e valores. Pela presença da polícia, ou pela ausência de toda e qualquer outra presença do Estado na favela, a violência institucional é cotidiana. A favela tem regras e leis que poucos descrevem mas, uma vez dentro dela, todos conhecem.Trata-se de lugares em que o Estado, quando opera, opera muito mal, e onde a redução de pobreza da última década funcionou muito mais da porta de casa para dentro do que para fora.

As organizações e os projetos sociais em ebulição nas últimas décadas exerceram um papel fundamental na construção das bases de formação para os movimentos de contranarrativa que passaram a surgir. As mídias comunitárias e alternativas que nascem nas favelas buscam fazer uma comunicação que não apenas olha para aquele território, mas que o enxerga em suas complexidades e seus valores porque conhece suas regras e dinâmicas. Os grandes veículos de comunicação, apesar de conterem diferenças políticas e comerciais, trabalham em equipe, construindo e reproduzindo uma “versão oficial” da notícia – que geralmente contempla bem a perspectiva de empresários e políticos e que criminaliza movimentos sociais, insurgências, o povo e sua condição de pobreza.

O morador da favela considerado “de sucesso” é aquele que teve um perfil publicado pelo Globo. As matérias produzidas por jornalistas que moram nas favelas costumam tomar repercussão quando replicadas, muitas vezes gratuitamente e sem créditos, por um grande jornal ou veículo de mídia hegemônico.

Nesse ambiente, aqueles que poderiam trazer certa diversidade e outra perspectiva para a cobertura jornalística desses espaços ficam reduzidos a meros personagens, fontes de informação. Em determinado momento as mídias comunitárias das favelas trabalharam em estreita colaboração com os grandes conglomerados que controlam as narrativas. Eram a informação, o risco de vida e toda uma trajetória de exclusão e invisibilidade em troca da visibilidade midiática que somente essas poderosas estruturas de poder poderiam conceder.

A versão oficial da notícia é sempre de que a polícia sobe o morro para “proteger o cidadão”, até que surgem inúmeras comunicações, vídeos e provas que desmontam essa esta narrativa, evidenciando a corrupção policial, violações de direitos e execuções extrajudiciais. A popularização do acesso à internet ajuda na disseminação de conteúdo que extrapola o “controle editorial” contido nas redações. Arriscando-se a analisar a cobertura de qualquer veículo tradicional de mídia durante uma operação policial, por exemplo, é fácil perceber que, desde sempre, na televisão, a favela é retratada na perspectiva de quem nela entra protegido pela polícia e nunca na de quem estava sentado no portão de casa quando a polícia chegou. Retratam o instinto de coragem do policial que arrisca a vida em nome de um “bem maior”, mas nunca aquela sensação de congelamento de quando você saiu de casa para comprar um pão, bateu de frente com a polícia e ficou no meio de um fogo cruzado às oito da manhã.

Enquanto isso, porém, alguns de nós acessamos a universidade. Fugindo das balas perdidas, das dores dos racismos vividos, da constatação de que o ambiente universitário definitivamente não foi construído para gente como nós. Na faculdade, a dificuldade é imensa. Se é difícil conseguir entrar, todo semestre parece que não vai dar para continuar.

Ao longo de nossas experiências de formação universitária, forçadamente aprendemos que escrever é um processo subjetivo que deixa um pouco de si, de seus repertórios, de suas vivências, e que não existe a imparcialidade construída por mídia hegemônica, que estruturalmente representa uma parte. De acordo com a pesquisa “Quem é o jornalista brasileiro – perfil da profissão no país”, no final de 2012, 68% dos jornalistas brasileiros eram mulheres brancas, solteiras, com até 30 anos. Negros eram cerca de 5% do total de jornalistas no Brasil. Como acreditar em imparcialidade quando a produção jornalística, quase sempre baseada em construções subjetivas, é majoritariamente branca e elitista?

De maneira geral, analisamos que os grandes veículos de comunicação, apesar de suas diferentes linhas editoriais, controlam a narrativa e direcionam o olhar para a comunicação de temas, pessoas e territórios favelados quase sempre pautados pela falta. Além disso, constrói-se uma narrativa da necessidade de “contrapartida” quando pautamos a importância de nossa participação em eventos, debates e congressos, como se fosse demérito ser jornalista e morar na favela. 

Ironicamente, buscamos construir estratégias para ultrapassar os desafios impostos por empresas, organizações e pessoas que, muitas vezes, trabalham pela redução da desigualdade social, mas que reproduzem opressões estruturalmente impostas. Trabalhamos para gerações de jornalistas pobres que desafiaram a estrutura desigual e alcançam acesso aos espaços considerados de poder e intelectualidade. É quase como se precisássemos justificar a nossa presença nesses espaços.

Desenvolvemos nossas próprias metodologias para a construção de um jornalismo especializado na cobertura de favela e nos temas relacionados à desigualdade social. Com nossos celulares construímos todas as etapas de produção de uma reportagem, e acreditamos que esse este conjunto de ferramentas construídas coletivamente pode gerar resultados expressivos para a transformação que trabalhamos para construir. Ela diz respeito à produção de repertório necessário, mas também ao entendimento de que nós, jornalistas favelados, podemos produzir conteúdos como os verdadeiros sujeitos da notícia. A forma como nossas vidas e trajetórias são percebidas contribui para a transformação social e para a redução da desigualdade, porque constrói caminhos de possibilidades para que outros, como nós, ocupem os mesmos espaços – e espaços ainda maiores.[/vc_column_text][vc_empty_space height=”40px”][/vc_column][/vc_row]