Valorização da ancestralidade serve de base para construção da inovação

Texto: Nina da Hora / Foto: Ricardo Borges/Folhapress

Desde criança, vivencio a ansiedade pelo futuro —ou melhor, vivemos todos, né? Estamos sempre pensando à frente e, por vezes, deixando o presente só passar pela gente. Arrisco dizer que nós, da periferia, vivemos isso de maneira mais intensa. Principalmente se o nosso presente só envolver violência, assassinatos, impossibilidade de sonhar. 

Vivemos correndo atrás do futuro, querendo fugir da nossa realidade e levar os nossos para esse mundo paralelo. E, muitas vezes, não construímos a base necessária para chegar ao futuro sonhado —porque estamos preocupados com o que não vivemos e não conhecemos ainda.

Ter acesso à ancestralidade e resgatá-la permite que tenhamos mais facilidade em entender nosso presente e construir o futuro. Não devemos pular essa etapa. Por mais que a tecnologia nos dê a sensação de rapidez nas soluções, ela não nos dá nenhuma solução concreta para o futuro. Busquemos reflexões no presente que nos façam entender a importância de pensar antes de “gerar impacto”. É melhor pensar que impacto é esse que estamos gerando nesta era tecnológica.

Quando o cientista e filósofo senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986) afirmou que os povos originários da Terra eram negros, ele buscou e traçou um caminho de fatos a partir do passado, envolvendo espaços, características comportamentais e características físicas. A partir de questionamentos do presente, buscou no passado o entendimento —e isso revolucionou nosso futuro, isso permitiu acesso ao nosso povo, antes impossível. Uma possibilidade de uma nova narrativa na ciência e no mundo. 

O conhecimento da ancestralidade se estende para outras áreas, como cultura pop. Uma das formas mais importantes de comunicação com diversas gerações, os quadrinhos têm liberdade para aproveitar e utilizar eventos do dia a dia para cenários fictícios —como os super-heróis que surgiram a partir de pessoas e lutas reais para fortalecer essas mesmas lutas. 

É o caso das personagens femininas que surgiram na DC Comics e na Marvel entre 1954 e 1980, no auge do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. Com Princesa Núbia, irmã de Diana (Mulher Maravilha, DC), e Mulher Aranha (Marvel), de 1974, a luta e as responsabilidades das mulheres negras foram colocadas em espaços de heroísmo antes somente dedicados aos homens —ainda assim, com diversas questões em suas representações por vezes hipersexualizadas. 

Algo muito comum é que super-heróis negros tenham suas histórias contextualizadas a partir de pessoas importantes e suas contribuições para o mundo. 

O que estou querendo colocar aqui é a importância que tem para nós conhecer a nossa história verdadeira, e não só a que nos é contada nas escolas. Faz diferença em nossa construção de novas narrativas e novas possibilidades de futuro. 

Quando escrevo ancestralidade do futuro, é sobre refletir esses dois mundos que acabo vivendo como cientista e mulher negra, é perceber que, por mais que a tecnologia aumente o anseio pelo futuro, a ancestralidade me faz pensar a tecnologia a partir dos meus antepassados e seu impacto no futuro. 

Com isso, consigo pensar onde desejo estar inserida. E esse futuro passa por acessos, por experiências e por trocas. Que passam por coletivo e responsabilidades. Que passam por respeitos aos mais velhos e sabedoria para os mais jovens. Os acessos estão sendo construídos de duas formas dentro dessa sociedade disruptiva. 

Por mais que sejam difíceis os acessos, tendo o mínimo já conseguimos fazer a diferença. A tecnologia é só o produto de toda uma era, com embasamento e história. É o produto final de estudos e culturas. É o produto final de pesquisas e ancestralidade científica. Ela não deveria ser controlada, e sim compartilhada. E nós na periferia sabemos compartilhar, pois entendemos nossa ancestralidade.

Bastidores do FP

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