Tribunal internacional sobre o Cerrado condena o Estado brasileiro pelo crime de ecocídio e genocídio dos povos Comentários desativados em Tribunal internacional sobre o Cerrado condena o Estado brasileiro pelo crime de ecocídio e genocídio dos povos 1231

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Com o grito “é tempo de fazer acontecer a justiça que brota da terra”, povos e comunidades tradicionais do Cerrado realizam audiência final sobre Terra e Território 

“A nossa luta não é só por terra, mas pelo direito de viver nela e viver bem. Com direito a tudo o que é direito do ser humano”, ressaltou Miraci Pereira, agricultora e artesã do assentamento Roseli Nunes, de Mato Grosso, durante audiência final do Tribunal permanente dos povos (TPP), em Goiânia – Goiás.

Marcado por revolta e emoção, a 49ª sessão do TPP, ao longo de mais de 40 anos de existência, foi em defesa dos territórios do Cerrado. O processo teve início em setembro de 2021, com a realização, ao longo dos meses, de outras duas audiências temáticas: Audiência das Águas e Audiência sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade, finaliza a sentença, em julho de 2022, com a Audiência sobre Terra e Território e veredito do júri.

Articulado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, formado por 50 entidades, entre movimentos indígenas, quilombolas e camponeses, o TPP – que é um tribunal internacional de opinião e não vinculado ao sistema de justiça oficial, com sede em Roma, na Itália – tem o propósito de garantir que os povos e comunidades tradicionais tenham o direito à palavra, à possibilidade de expor os violadores e defender os seus territórios de sociobiodiversidade.

Foram apresentados 15 casos, referidos a contextos de graves e sistemáticas violações de direitos, localizados nos estados de Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí e Tocantins. Ao colocar em pauta o que o poder público não ouve e se omite a cumprir direitos fundamentais, o TPP expõe as forças que expulsam os povos e comunidades tradicionais de suas casas.

Ao se destruir o Cerrado não se está apenas destruindo a savana mais biodiversa do planeta, mas está estabelecendo o principal atalho para o avanço sobre a floresta amazônica.

Rosa Acevedo, integrante do júri.

As violações dos direitos, o genocídio anunciado e o adoecimento das pessoas diante da impunidade, tem consolidado o Cerrado como uma “zona de sacrifício” daqueles que lutam pelo direito de sonhar futuros para toda a humanidade.

O TPP também tem um espaço para ouvir os acusados, em especial o governo brasileiro, que foi convidado desde o começo das audiências a enviar um representante que acompanhasse todo o processo. No entanto, não houve nenhuma resposta do governo federal, estadual, municipal e empresas nacionais e internacionais citadas nos casos.

Racismo e genocídio anunciado

Rosa Acevedo, integrante do júri, socióloga venezuelana e professora da Universidade Federal do Pará, chamou atenção para o fato de que estamos diante de casos atravessados pelo racismo estrutural. O Brasil é um país racista e a violência, também no campo, está acontecendo com as populações negras, quilombolas e indígenas.

A professora ainda lembra que nos dados de massacres, – pois não são apenas conflitos, porque não existe paridade nesses enfrentamentos – não aparece a cor da pessoa, não aparece outros elementos, somente um corpo que foi baleado e assassinado.

“Que esse júri olhe por nós e faça um encaminhamento para o STF contra o marco temporal, porque nós precisamos da nossa terra para viver. Senão nosso cacique vai morrer, e não vamos ter nem a terra para enterrar ele”, clama Davi Krahô, vice-cacique da aldeia Takaywrá, no Tocantins.

O Brasil é terra indígena. A soja que é exportada para outros países são regados por sangue indígena Guarani-Kaiowá. Foi feita uma guerra, uma situação muito difícil, de ver os parentes sendo baleados. Pior que animal, nem animal a gente quer matar dessa forma.

Eryleide Domingues, comunidade indígena Guyraroka, Mato Grosso do Sul.

A jornalista e documentarista, Eliane Brum, que também compõe o júri, destacou que os povos estão passando por um processo de tortura pelo arrancamento de seus direitos, pelo genocídio em curso, pela destruição de seus corpos que são territórios e territórios que são corpos. Tal violência é um ato de sequestrar a possibilidade de imaginar futuros, o que torna o presente brutal.

“A justiça é injusta”

Um dos casos apresentados foi o da Comunidade camponesa de Macaúba, de Catalão – Goiás, que expôs as consequências da invasão de complexos minerários de nióbio e fosfato da Mosaic Fertilizantes e China Molybdenum Company. Empresas que já dizimaram outra comunidade da região e que agora se encaminha a dizimar também a de Macaúba, onde vivem mais de 40 famílias, que convivem com a poluição dos recursos, expulsão forçada da comunidade e falta de diálogo junto ao poder público.

“A nossa história tá lá, a nossa vida tá lá, mas temos que sair, porque não tem mais condições de vida ali”, diz Maria Isabel de Oliveira, representante da comunidade que ainda conta que seus filhos vivem com câncer. Esta é uma doença que está se tornando comum na comunidade e que, segundo a agricultora, é resultado da contaminação dos alimentos e da água causados pelas mineradoras e suas barragens que estão praticamente na porta de sua casa. “A justiça é injusta, o dinheiro virou a justiça”, ressalta.

Expressões recorrentes durante o TPP giraram em torno da exigência do respeito, punição aos criminosos e de que é preciso reforçar a defesa contra a criminalização dos povos e comunidades. O projeto de vida está ameaçado, os povos estão resistindo para existir ao reivindicar que se cumpra o que já está escrito na própria Constituição Federal.

“Não estamos vivendo, estamos passando a vida”

O sentimento de indignação e injustiça percorre todos os casos apresentados no TPP. Em Tocantins, território dos povos indígenas Krahô-Takaywrá e Krahô Kanela, Davi Krahô expôs a situação da Aldeia da Confusão que recorrentemente fica submersa devido às contenções de rios para monocultivos.

A primeira coisa que fizemos não foi lavar o rosto, mas lavar os pés. Nossos peixes estão morrendo devido ao desmatamento, barragem e agrotóxicos. Não temos a posse do território, sem território ficamos sem ter onde enterrar os nossos mortos. Não estamos vivendo, estamos passando a vida.

Davi Krahô, Aldeia da Confusão, Tocantins.

Eliana Matos, pescadora na Comunidade Cachoeira do Choro, em Minas Gerais começou sua fala lembrando que “no dia 25 de janeiro de 2019, a Vale assassinou 272 pessoas. Nenhuma empresa em Minas mata tantas pessoas como a Vale”. Seja soterrada, nas estradas com acidentes ou devastando os recursos da comunidade, a Vale S.A, mineradora multinacional brasileira, é responsável também por um dos maiores crimes ambientais, o rompimento da barragem de minérios em Brumadinho.

Até hoje as comunidades afetadas continuam sem aparado efetivo, convivendo com insegurança alimentar e financeira. O rio que abastecia e fornecia subsistência à comunidade está poluído. “Ficamos tomando água podre e imunda”. A pescadora ainda conta que o Ministério Público é conivente, a comunidade foi entregue nas mãos dos criminosos sem direito a indenização justa, o que condena também os que vão nascer sem território.

A mineração, assim como o agronegócio, a grilagem, o desmatamento, os incêndios, a pistolagem, formação de barragens, garimpo, plantações de monocultura, formação de milícias agrárias se configuram como monstros que devoram tudo e todos, um fantasma que vira e mexe alcança as comunidades tradicionais, linha de frente contra a devastação da biodiversidade.

“Na teoria, no papel, tá muito bonito a lei, mas na prática não funciona”

A criação de obstáculos à direitos básicos como água, alimentação e trabalho é uma violação da obrigação, por lei, do governo brasileiro de proteger os direitos humanos dos povos do Cerrado. São crimes econômicos e ecológicos que formam um desmonte da conquista histórica de direitos.

“Nós temos um sistema de justiça que aparentemente foi pensado, tão somente, para proteger a propriedade privada, e que é extremamente efetivo quando fala de proteção de interesses de grandes proprietários ligados ao agronegócio, de mineradoras, de grandes grupos econômicos. Mas extremamente ineficiente para escuta e garantia de direitos para o restante da população”, reforça Pedro Alexandre, da Defensoria Pública do Estado do Tocantins, durante a audiência final do TPP.

O defensor ainda pontua a falta de sensibilidade dos representantes do poder judiciário diante das violências dos povos, a maioria não visita os lugares, não acompanha as audiências com pessoas em situação de vulnerabilidade e não tem interesse em conhecer a realidade das pessoas. Existe uma seletividade e abrandamento do sistema jurídico para com os grandes grupos econômicos.

O ecocídio do Cerrado afeta todo mundo

A validação das várias violências que recaem sobre os povos e comunidades tradicionais fornece respaldo tanto para a morte dos recursos naturais, quanto para os povos que coexistem, com seus saberes e fazeres, na manutenção do Cerrado de pé. Isso se configura em ecocídio quanto se ignora e autoriza a morte de um dado ecossistema e de seus povos.

Além disso, a expulsão dos povos de sua terra empurra essa população a sobrecarregar as periferias das cidades, a viver com insegurança alimentar, que inclui falta de água potável, com ameaças à vida, à saúde e ainda à submissão a trabalhos de exploração para suprir a insegurança financeira.

Os atos de negligência do Estado, por suas canetadas, pretende “limpar” o campo para o avanço do agronegócio, da mineração, da implantação de multinacionais e retirar o poder à soberania territorial de quem vive há séculos naquela terra, vivendo com fartura e cuidando dos ecossistemas que sustentam também quem vive na cidade.

O Tribunal Permanente dos Povos condenou, pela sua contribuição decisiva, por ação e omissão, para o crime de ecocídio do Cerrado que envolve, inevitavelmente, o processo de genocídio dos povos do Cerrado, o Estado brasileiro, o atual governo executivo federal, as unidades da federação, instituições públicas federais e estaduais, e empresas como Amaggi & Louis Dreyfus Commodities, Bayer-Monsanto, Bunge, Cargill, ChemChina/Syngenta, China Communications Construction Company, China Molybdenum Company, Condomínio Cachoeira Estrondo, Horita Empreendimentos Agrícolas, Mitsui & Co, Mosaic Fertilizantes, SLC Agrícola, Sul Americana de Metais S.A., Suzano Papel e Celulose, TUP Porto São Luís, Vale S.A., e os fundos de investimento TIAA-CREF, Harvard e Valiance Capital.

Formularam o veredito final, após contextualização em audiências, o presidente do TPP, Philippe Texier, juiz honorário do Tribunal de Cassação da França; Antoni Pigrau Solé, catedrático de Direito Internacional da Universidade Rovira i Virgili de Tarragona, Espanha; Deborah Duprat, jurista e ex-Vice-Procuradora-Geral da República do Brasil; Bispo José Valdeci da Diocese de Brejo, Brasil; Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista brasileira; Enrique Leff, economista, sociólogo e filósofo ambiental mexicano; Rosa Acevedo Marín, socióloga venezuelana e professora da Universidade Federal do Pará; Silvia Ribeiro, jornalista uruguaia e investigadora do Grupo ETC; e Teresa Almeida Cravo, professora de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, Portugal.

O TPP realizou recomendações para que haja projetos de consulta às comunidades e avanço na institucionalidade que tem contribuído no papel de conquista de direitos, e que vem sendo destruída no atual governo.

É tempo de fazer acontecer a justiça que brota da terra!

Fotos: Thomas Bauer/CPT-H3000 | Artes: Campanha Nacional em defesa do Cerrado | Edição: Gabi Coelho

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