preta

A mulher preta é constituída de trajetórias e mobilidades coletivas, mas com passos únicos que constroem possibilidades de um amanhã. 

Entre 16 e 17 anos me olhava no espelho e não reconhecia, não sabia exatamente quem era a pessoa refletida, ou se a pessoa refletida era a pessoa que se olhava no espelho. Naquele momento, a pergunta, olhando nos olhos do reflexo: Quem é tu?

Aquele cabelo alisado, o não-ser na família onde entendia que era a minha, o estranhamento, uma busca por me conectar com aqueles olhos desconhecidos do reflexo me levou a muitos questionamentos e, a partir daquele momento, às inúmeras transições que comecei a viver.

A grande primeira questão foi a respeito de qual curso superior fazer, eu não queria conflitos com as pessoas da família onde eu vivia, não queria ter que disputar conhecimentos, principalmente, porque me lembravam constantemente do quão incapaz, intelectualmente, eu era, e, por muito tempo, acreditei cegamente nisso.

Depois do censo do IBGE de 2010 (o último), após uns conflitos em casa, decidi que estava na hora de partir daquele, que eu sabia, que não era meu Lugar. Fui para a capital do Estado, por entender que aquele poderia ser um lugar para eu viver, mesmo sem curso superior, técnico ou alguma experiência profissional.

Ao chegar em Goiânia, conheci pessoas que foram de fundamental importância para me conectar com pessoas que me estimularam e, não apenas, mas pegaram nas minhas mãos e juntos, comecei a aprofundar ainda mais nas questões raciais, entender qual era a Minha História, Quem era Eu e, principalmente, Quem Queria Ser.

O Coletivo Beatriz Nascimento (CANBENAS), foi de fundamental importância com apoio, não apenas de pessoas as quais eu me reconhecia racialmente, com suas cores, cabelos, estéticas, que me incentivaram e me acompanharam na tomada de decisão de voltar a fazer um curso superior e como conseguir uma vaga na Moradia Estudantil Universitária.

Ao fim, me formei em 2020 e, com isso, passou toda uma novela em minha cabeça, todas as inseguranças e medos, sem compreender a princípio o quê me causava tanto medo e como sair do lugar foi o grande impulso para buscar quem era eu.

A emoção me trouxe à memória minha família biológica, a trajetória das mulheres da minha família, dos homens, e me conectei com a importância de buscar curar a menina que não teve uma família e tampouco, a princípio, uma rede de apoio para se encontrar e se curar.

Durante a graduação eu tive a oportunidade de ser acompanhada por algumas psicólogas. Conhecer uma terapeuta onde eu, de alguma forma me reconhecia, foi muito importante para que eu me permitisse conectar com a dor para buscar a cura, num espaço onde eu não precisava justificar ou explicar nada, apenas me encontrar com as dores para saná-las.

O Curso de Geografia me possibilitou ver o mundo desde outro lugar. A graduação me ajudou no processo de autoconhecimento e me fez conhecer mais sobre as questões étnicas e raciais dentro daquele espaço, que eu chamava sem questionar, de Latianoamérica. 

Esse acontecimento junto ao fato de ter feito intercâmbio social na Argentina, me fez questionar o porquê eu não via pessoas negras neste país.  Terminada a graduação, eu não tinha nada que me prendesse no Brasil, então voltei para a Argentina com a perspectiva de entender as questões raciais e étnicas nesse país e nos demais do continente.

Foto: Mestre Vlad Farias.

Toda essa trajetória tem me conduzido a um lugar de Cura do meu Ser, Negra, Mulher, brasileira, tocantinense, de forma individual e ao mesmo tempo de Cura Coletiva de Mulheres Pretas, Homens Pretos, Mulheres Indígenas e Homens Indígenas.

Inicialmente por compreender que posso e devo conhecer mais sobre mim a partir desse Território argentino e dos vários Territórios Existente nessa região do mundo, vou em busca também de conexão com o Território do meu Eu e do resgate histórico de uma cultura do qual somos privades desde a infância em todos os espaços educativos formais e informais.

A caminhada tem me feito questionar a ideia de Latinoamérica, tem me feito questionar, o termo “decolonialidade”: esses lugares, identidades e ressignificações dizem respeito a quais corpos? Essas provocações e as experiências que venho adquirindo, a busca pela conexão com o Ser Preta Brasileira, tem me levado para outros espaços de aprendizagem, como o Espaço proporcionado pela Capoeira e outros significados e significantes têm surgido no meu percurso. Como o termo “Anticolonialidade”, junto aos espaços de escuta e partilha com as mulheres indígenas bolivianas que vivem em Mendoza, venho aprendendo outras vivências e outras realidades da qual me somo.

Outros caminhos têm me construído e me desconstruído, simultaneamente, e entendendo o que Nêgo Bispo, sábio quilombola do Brasil, fala sobre a circularidade do início, meio, início, nesse encontro comigo mesma, tenho entendido a importância de confiarmos em quem queremos ser e buscar os caminhos de encontro a quem queremos nos tornar.

 O Cuidado com meu Corpo, ao compreendê-lo como um Templo Sagrado, conhecendo suas possibilidades de recuperação física e emocional através do autoconhecimento e pela ruptura com o medo paralisador de sentir mais dores do que as já conhecidas, permitir-se ser vulnerável e pedir ajuda, são alguns processos de meu autocuidado.

Não tem sido fácil me permitir ser o Tamanho da Mulher que posso ser, não com pouca luta, mas com muita confiança de quem quero me tornar. Uma Mulher Preta em Movimento pelo Continente, compreendendo e desenvolvendo o Encontro para consigo e a possibilidade de dar a mão a quem quer e procura Comunic-Ação Consigo mesma através do Espanhol com aspectos Antirracistas e Geográficos do Continente, para construir novas narrativas e expandir as possibilidades de intercâmbio.

Rosa Flor é professora de Espanhol e Português para estrangeiros, brasileira vivendo na Argentina.

Foto em destaque: Palmonte | Edição: Renato Silva e Ludmila Almeida.

Bastidores do FP

Receba mensalmente nossos conteúdos e atividades com a comunidade.

You May Also Like

Avisa aí que Favela também é diversão!

A vida do favelado é cheia de tanta correria, que nem chega…

Para se ter um outro amanhã, a Educação Infantil deve ser pauta de prioridade política

O acesso e permanência das crianças na educação deve ser o foco…